quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Reflexão sobre a Crise Brasileira

Estamos em meio a uma crise institucional, política e econômica, mas me ocorre pensar não a crise, mas numa análise simultaneamente histórica e psicológica, para refletir sobre como a crise é imaginada. O material de que se faz a história é a memória, a nossa argamassa, ao mesmo tempo tão sólida e tão diáfana, evanescente. Nossa memória é influenciada pelos monumentos que erigimos, sejam eles feitos de pedras ou de palavras. A memória coletiva atual é a negação da histeria como proposta por Freud em seus primeiros anos, dizia ele que as histéricas sofriam de reminiscências, nós padecemos pela ausência delas, somos histéricos ao avesso. Ao debatermos essa crise, implicitamente e de maneira insidiosa a debatemos como se fosse a primeira e a última das crises. Quando evocamos a história, o fazemos apenas para ratificar como um efeito retórico a nossa falta de historia em frases grandiloquentes e vazias como “o maior escândalo da história”. Frases como esta são reveladoras mais de uma tentativa de erigir um monumento fúnebre a história do que a de realmente qualificar o que se passa em nosso tempo, são um monumento à estupidez e que se coloca ativamente numa posição impossível de costas para aquilo mesmo que parece evocar para justificar nossa amnésia.

Historiadores não são, como dizia Marc Bloch, Juízes dos mortos, não somos Osíris. Tampouco somos juízes dos vivos, pois ao julgar perdemos a oportunidade de compreender, e devemos ao menos perceber que nossa capacidade hermenêutica, como sociedade, é baixa, quase nula. A frase a que aludi antes, que representa um gesto de má fé de quem a produz e de estultice de quem nela crê, é uma negação fundamental da história, lembremos-nos do que disse Le Goff ao tratar daquilo que reivindicam os historiadores, eles pretendem que todo fenômeno da atividade humana seja estudado tendo em conta as condições históricas em que existiram, não é o caso de explicar o fenômeno por meio dessas condições históricas, estabelecendo uma relação de causalidade pura, mas recusar a validade de toda explicação que negligencie as condições históricas. As narrativas sobre a crise fazem justamente isso de maneira acintosa, evocando a história apenas para melhor negá-la, numa atitude que, na melhor das hipóteses é perversa. O perverso na psicanálise é aquele que recusa (Verneinung), ele conhece a lei, mas a nega. Se formos parcimoniosos com os que criam essas narrativas, ou seja, considerarmos que compreendem minimamente sobre história, sua atitude é marcada por esse traço perverso. Tal narrativa, ou a maneira como a crise é imaginada, é uma narrativa perversa, ou marcada por uma perversidade que é o avesso do anacronismo, ao invés de ver o passado sempre com as lentes do presente, enxerga o presente abandonando propositalmente o passado.

A nossa mídia, aludindo uma vez mais a Le Goff, criam um novo acontecimento e um novo estatuto do acontecimento histórico, impingindo a história um regresso do acontecimento. Ainda mais perigoso, a mídia homogeneíza o imaginário social, tal pasteurização compromete o sentido histórico de nossa sociedade e a validade de uma verdade histórica. A verdade nos é informada todos os dias pela televisão e nos cremos, tolamente, testemunhas oculares desses fatos como acontecem e assim que acontecem, voltamos ao ideal impossível de Rank de uma história “was eigletlich gewesen”. As escolhas que são feitas nessas narrativas, para se privilegiar alguns pontos e sonegar outros, mesmo o cuidado com as palavras usadas, as ênfases e eloquentes silêncios são sutilezas que a ilusão de testemunha encobrem, pois está tudo ali e eu estou vendo, presenciando. Esse é um tipo curioso de cegueira, em que é justamente a possibilidade de ver e a imagem que cegam, ou talvez fosse melhor dizer, a ilusão de naturalidade dessas imagens. Essa ilusão de naturalidade desfaz em nosso espírito o desejo de interpretar, pois não há nada a ser interpretado, está tudo simplesmente lá, tudo às claras. Justamente essa falsidade luminosa é o que nos cega e compromete o nosso julgamento, nossa capacidade de compreender. Num deserto espiritual caminhamos em direção a uma miragem, sem nos percebermos que deserto e miragem se retroalimentam, que o deserto é fruto da miragem e vice versa. A metáfora da terra devastada (Waste Land) de Eliot nos mostra seu poder fecundo ao descrever com perfeição o que significa a maneira como essa crise é imaginada, pois a terra devastada é aquela onde as pessoas vivem vidas inautênticas. Ao perseguirmos coletivamente essa miragem que é posta diante dos nossos olhos, sem questionar, sem interpretar, apenas repetindo, dizendo e fazendo o que outros determinaram para nós, nossa nação se converte nessa terra inóspita, devastada onde nada cresce.

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