domingo, 25 de outubro de 2015

Não nascemos preconceituosos, nos tornamos preconceituosos

A frase de Simone de Beauvoir que caiu no ENEM tem causado espécie e celeuma, e, uma vez mais, vemos a terrível polarização que impede o diálogo em nossa sociedade. As respostas indignadas à frase “não se nasce mulher, tornar-se mulher”, são imensamente reveladoras. Para além do velho macartismo, e da “doutrinação marxista” (nesse pensamento simplificador todo pensamento de esquerda é marxista), surgiram ataques reveladores, pautados por um determinismo biológico que está na moda no espírito do ocidente, o velho materialismo médico que William James já atacava no início do século passado. 

Gostaria de oferecer uma reflexão histórico psicológica dessa reação tão exacerbada. Temos uma longa história de determinismos, desde Gustave Le Bon, Galton, Lombroso, em que o peso recai sobre a matéria, o físico e o biológico. Psiquiatras como Jeanne Pierre Falret, Xavier Bichat e Augustin Morel, que defendia a tese da “degeneração mental” que imprimia um caráter hereditário as condições psicológicas, passando por Wilhelm Griesinger, A. Zeller, e o professor de neuropsiquiatria de Freud Theodor Meynert que acreditavam piamente que a psiquiatria deveria ser reduzida a anatomia patológica. Toda a explicação para a loucura e, por tabela, para diversos outros comportamentos estava no cérebro e em suas localizações, numa determinação biológica, anatômica. Lombroso falava de um criminoso nato, o comportamento criminoso era definido ao nascer, novamente o biológico, Le Bon, que é citado no Mein Kampf de Hittler, também desdenhava da vontade individual. Desde o último quartel do século XIX que tentam fazer a biologia nos definir. Mas existiram homens como James, Freud, Jung, Janet, Charcot que se levantaram contra isso, se colocaram contra o fisicalismo, o materialismo médico, e, é claro, temos os filósofos como Simone.

Aqueles que parecem tomar o partido de Lombroso nos ataques a filósofa, esquecem que “mulher” é igualmente uma construção histórica e social. Ser mulher hoje não é, culturalmente falando, o mesmo que ser mulher no tempo de nossos avós. Noções que parecem naturais como: homem, mulher, família, criança, não o são. Todas elas são, por certo, influenciadas pela biologia, mas são históricas, culturais. Entre os povos tribais, o jovem precisava passar por um cruento ritual para se tornar cultural e psicologicamente homem, ele não nascia homem, mas se tornava homem. Há um segundo nascimento, simbolizado nas metáforas dos diversos rituais, como os monges que raspam as cabeças e se tornam “quase modo genitus”, como recém-nascidos. Nossa sociedade parece ter perdido seus ritos, parece que estamos aprisionados, mesmerizados pelo saber médico, pelo tacanho materialismo médico de um Meynert, ou pior, de um Lombroso. 

Cada um de nós é um ser inacabado, nosso biologia é um ponto de partida e não de chegada. Temos sempre uma criança em nossa alma, para sempre passível de crescimento, desenvolvimento, mudança, o puer aeterno dos mitos gregos e latinos. O pedaço de nossa alma que transcende a história e mesmo o aparente determinismo biológico, somos seres em construção, cultural e psicologicamente. Se alguma mulher já nascesse mulher ela teria que se conformar com a sua sina biológica, seu papel social estaria pré-estabelecido, determinado pelos seu duplo gene X. Todos nós nascemos mudos e somos recebidos na cultura, na linguagem que nos cria e nos recria e nos transforma e, pasmem, nós a transformamos também! Nós nos tornamos homens e mulheres de nosso tempo, de nossa cultura, de nossa sociedade e podemos transcender isso até certo ponto e mudar e nos transformarmos. Antes da grande guerra as mulheres não votavam, há 30 anos uma mulher “desquitada” era uma puta, há 50 anos garotas de 13 anos já se casavam grávidas, os exemplos podem se multiplicar ad infinitum. 

Eu fico feliz que Simone cause incômodo, a filosofia deve incomodar! Mas para além do mero xingamento, da mera polarização, a filosofia nos convida a pensar. Mesmo para discordar precisamos pensar. Aqueles que revivem em seus preconceitos afetivos e desejos quiméricos o que de pior o materialismo médico produziu, perdem a oportunidade de pensar, de refletir sobre a frase de Simone, a discordância, meus amigos, é fundamental a filosofia, discordem, mas antes aceitem o outro e a diferença e pensem ao invés de serem meros marionetes de preconceitos de toda espécie. Esse tipo de discurso que tenho visto é estéril, pois é taxativo e faz parar de pensar. Abram mão, nem que seja por um mero instante de suas certezas e, talvez, vocês escapem do determinismo do preconceito, esse mais poderoso do que o determinismo biológico.

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