quarta-feira, 16 de abril de 2014

Resposta a: “Terapia: Duas coisas que você deveria saber” de Rafael Hide



O texto que segue é uma tentativa fraterna de resposta ao vídeo abaixo



https://www.youtube.com/watch?v=POXvyB2QQxc

A psique não pode ser apreendida numa teoria; tampouco o mundo. As teorias não são artigos de fé; quando muito, são instrumentos a serviço do conhecimento e da terapia; ou então não servem para coisa alguma. Jung.

Caro Rafael,

Seu vídeo me suscitou o desejo de lhe escrever uma resposta, não nos conhecemos, mas essa possibilidade de comunicação é uma das mágicas de nosso tempo e espero que, assim como a sua opinião chegou a mim, a minha resposta possa, de alguma maneira chegar até você. Vou tentar responder ponto a ponto seus questionamentos, sinceramente não sei se conseguirei fazê-lo, um de meus autores preferidos, o historiador Marc Bloch, inicia sua última obra afirmando “(...) não imagino, para um escritor, elogio mais belo do que saber falar no mesmo tom aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos”. Certamente não me incluo entre esses eleitos, mas vou me esforçar para ser claro, o mais claro possível.

Começo por aplaudir a sua iniciativa, seu depoimento é sincero e honesto, também corajoso. A maioria de suas críticas acerta o alvo, eu mesmo acrescentaria diversas outras e lhe remeto a um de meus textos sobre o tema (O Lugar da psicologia). Você também está correto ao advertir para a falácia do argumento de autoridade, por isso, não perderei tempo com tolices como títulos e diplomas, mas quero salientar a ausência de um, não sou psicólogo. Você, caro Rafael, inicia suas considerações advertindo para um ponto crucial, a ausência de um paradigma unificado em Psicologia. Um importante epistemologo da psicologia, Antonio Gomes Penna, afirma a mesmíssima coisa: não existe uma, mas várias psicologias. Basta um exame mais atento para perceber tal fato, chega mesmo a ser algo obvio, mas ao leigo parece sim existir algo como uma “psicologia”, o que você está correto em apontar como uma quimera e, principalmente, como algo problemático.

Diante desse fato a que você aludiu, não posso responder pela miríade de psicologias que existem por aí, espero que compreenda as minhas limitações, mas irei responder as suas indagações a partir da Psicologia Complexa fundada por Carl Gustav Jung. De início, gostaria de deixar claro que poucos autores foram tão mal entendidos e desvirtuados quanto Jung e que, eu mesmo, sou um ferrenho crítico do que passa hoje em dia por Psicologia Junguiana, mas abusus non tollit usum. Assim como você, eu tenho grande apreço pelo método científico, e também pela epistemologia. Se estiver interessado em saber que resposta a ciência fundada por Jung tem as suas perguntas, basta continuar lendo. Como última palavra de introdução, esse também é um tema que me traz profunda irritação e afetos muito pouco positivos, mas tentarei ao máximo me afastar desses afetos, pois eles trazem uma terrível restrição da consciência e fazem brotar em nós aspectos muito primitivos de nossa alma.

Comecemos pela sua primeira indagação dirigida ao terapeuta, devo salientar que é uma pergunta difícil, “O que você entende como Psicologia”. Bom, para Jung a psicologia não é nem uma ciência da natureza, apesar de utilizar o método das ciências da natureza, o método empírico descritivo e nem tão pouco uma da ciências humanas, mas ocupa uma posição sui generis. É importante afirmar que a Psicologia não é e nem pode ser filosofia, para ele a filosofia não passava de “fichas de contar do intelecto movidas para frente e para trás a milhares de anos”, menos ainda a psicologia pode se arvorar a ser metafísica, pois não podemos subir em nossos próprios ombros para ver mais longe, não podemos nos colocar em um estado suprapsíquico e falar das coisas como elas realmente são, a psicologia não pode falar da essência das coisas, mas, exclusivamente, da maneira como elas são imaginadas. Voltando ao método empírico, em psicologia a pergunta “por quê?” é inconveniente, pois não sabemos por que as coisas são como são, responder a essa pergunta é trabalho do teólogo e do filósofo (metafísico), mas o método empírico tem a vantagem de nos dizer “como” as coisas funcionam e, para Jung, não se deve jamais se afastar do campo dos fenômenos e tampouco, se perder em especulações vãs. Para Jung a psicologia é uma ciência, mas uma com sérias complicações. Como você bem apontou, não dispomos de uma matemática, e isso é um problema epistemológico sério! O psíquico não é matematizável, por isso, o primeiro passo, de uma psicologia que deseje ser uma ciência é definir seus conceitos da maneira mais precisa possível e que esses conceitos sejam retirados da linguagem comum sempre que possível. Além disso eles servem unicamente para descrever grupos fenomenológicos, assim como o conceito de artrópodes, que descreve os invertebrados com patas articuladas. Além disso, Jung considerava que o único critério de validez de uma hipótese é o seu valor explicativo. Como eu disse antes, não se deve perder tempo com divagações ociosas.

Uma das complicações da Psicologia é o fato de que se trata não de uma ciência sobre o psíquico, mas no psíquico! Todas as hipóteses psicológicas são, elas mesmas, fenômenos psíquicos, não há ponto arquimediano externo, daí a proposição por Jung de uma conceito fundamental chamado de realidade psíquica, mas que pode ser resumido ao se dizer que tudo aquilo que age, que atua, é real. Como uma última palavra, Jung advertia que a psicologia não poderia jamais se converter em uma visão de mundo, mas que era indispensável que o terapeuta possua uma visão de mundo, mas que esteja aberta a mudança em virtude do diálogo com o paciente. Para ele o papel do terapeuta é o de espelho dialético, e o método clínico o método dialético.

Continuando com a sua primeira pergunta, que se subdivide em várias, passo a “qual a estrutura e a interpretação que você dá para como as pessoas funcionam”. Bom, você não pega nada leve com os pobres terapeutas, espero que perceba o terrível grau de complexidade que essa pergunta exige, mas vou tentar responder. Basicamente, a visão de homem na psicologia de Jung pode ser resumida pela famosa frase de Freud “não somos senhores em nossa própria casa”, advirto que junto da resposta a essa questão virá também à resposta, não menos difícil, de “por que você acredita nisso”.  Jung postula a existência de um inconsciente psíquico, mas o que isso significa? E por que ele precisa postular isso? Bom, inconsciente é um conceito limítrofe e negativo e que possui a grande vantagem de não afirmar nada, diz apenas que existem fatores que não são conscientes e que eu os desconheço completamente e isso evita um preconceito. Fundamentalmente o inconsciente é aquilo que eu não sei, minha definição preferida é a de que é um fator irracional existencial inalienável. Repare no termo inalienável. Jung também postula, como hipótese basilar, que existe uma relação entre a consciência, que é um processo momentâneo de adaptação, e o inconsciente que é compensatório e/ou complementar, mas que nos casos de neurose, pode ser de oposição. Além disso, a consciência é intermitente e momentânea, sendo o inconsciente anterior, simultâneo e posterior à consciência do eu. Na realidade, o inconsciente só complica e bagunça as coisas, mas, para nosso azar e sorte paradoxalmente, ele é um fato empírico. Diga-me Rafael, quantas vezes você já não sonhou com coisas tão estranhas ou indecentes que você jamais teria coragem até mesmo de pensá-las conscientemente? Ou quantas vezes, tomado por um afeto, você não disse ou fez coisas que jamais faria se pensasse um pouco melhor? Ou quantas vezes, diante de uma pessoa que você sabe perfeitamente o nome, você esqueceu o nome justamente no momento crucial? Ou, diante de uma prova importante, para a qual você estudou muito, contra todo o bom senso, diante da tensão você esqueceu tudo? Esses são apenas alguns exemplos cotidianos de como nossa adaptação consciente pode ser afetada por um fator desconhecido e que parece dotado de uma natureza maquiavélica.

Sua segunda pergunta trata do diagnóstico/prognóstico/tratamento, bem, eu terei de lhe dar uma resposta embaraçosa, pois fundamentalmente, o terapeuta não pode fazer nada, ou no máximo, muito pouco pelo paciente, mas deixe-me lhe explicar porque antes que você pense que nossa ciência é inútil, longe disso. Jung, em um de seus livros mais complicados, sincronicidade, cita o caso de uma paciência que já passara por 3 médicos (ele era o terceiro), sem nenhum sucesso em conseguir ajudá-la. Ela estava, junto com ele, a um bom tempo empacada, mas tivera um sonho com um escaravelho e, ao relatar esse sonho um inseto parecido com um escaravelho começou a se chocar contra a janela, sobre esse insólito evento Jung asseverou que para tirá-la de sua condição de estase “para isto, evidentemente, seria necessário um acontecimento de natureza irracional, que eu, naturalmente, não teria condições de produzir”. Jung afirmava ser crucial a irracionalização dos objetivos da terapia. Veja Rafael, quando eu creio por motivos empíricos, que existe um fator existencial, irracional, inalienável, isso complica um pouco as coisas. Tomemos o sofrimento neurótico, ele é um logro, não possui valor moral. Uma pessoa problemática sofre, mas sabe o motivo de seu padecer (o vizinho, a namorada, a matemática etc), um neurótico sofre, mas não tem ideia dos motivos de seu sofrer. Em psicologia complexa não se procura um diagnóstico clínico, algumas vezes ele só é possível ao final do tratamento, procura-se um diagnóstico psicológico, isto é, um diagnóstico dos complexos e ele só se revela no decorrer do tratamento, pois é inconsciente. Na realidade em uma anamnese aquilo que o paciente diz normalmente encobre o verdadeiro problema, pois nem o paciente e nem o analista sabem de antemão do que se trata. O paciente só sabe que tem um problema, mas nem faz ideia do que seja esse problema, parece familiar?

Eu gosto de recordar sempre algo narrado por Franz, principal discípula de Jung, certa feita ela estava sendo supervisionada por Jung e falava de como estava se esforçando ao máximo para que uma de suas pacientes não surtasse, ao que Jung retrucou “como você sabe que ela não deve surtar? Como você sabe que depois do surto ela não pode melhorar? Fundamentalmente não sabemos o que deus quer das pessoas”. Embaraçoso não? A sua pergunta, uma pergunta que se deve levar a sério, um terapeuta realmente comprometido com o método deveria responder “não sei”. Em psicologia complexa se considera que a empatia não nos leva muito longe, em análise importa a simpatia, no sentido de sofrer junto, o analista e o paciente sofrem juntos as agruras do processo e uma parte considerável desse processo é Deo concedente, ou seja, depende da natureza, depende do inconsciente e da manifestação espontânea de um acontecimento de natureza irracional. Para Jung irracional significa simplesmente extra-racional, se você já conheceu alguém com depressão, deve ter notado que muitas pessoas lhe dão conselhos bem intencionados e muito sensatos, mas que não adiantam de nada, pois o aspecto irracional da vida é impermeável à racionalidade. Se fôssemos senhores em nossa morada, jamais faríamos algo tão insensato quanto ficarmos deprimidos. Sobre o diagnóstico, Jung também dizia algo embaraçoso, mas verdadeiro, de que dizer que alguém é um filhinho de papai é muito mais preciso psicologicamente do que dizer que é histérico.

O tratamento consiste um diálogo em que todas as técnicas são abandonadas, e em que o papel de sujeito cabe ao paciente. Procura-se prestar muita atenção aos sonhos, pois eles são a “via régia de acesso ao inconsciente”, mas basicamente o terapeuta vai ouvir o que o paciente tem a falar, até que ele tenha realizado uma confissão mais ou menos completa, pois ali ele pode falar, desde que deseje, de coisas inconfessáveis, e isso, por si só, já possui algum efeito sobre a sua alma.

Você, caro Rafael, está correto ao afirmar que alguns psicólogos se escondem por trás de suas teorias, Jung afirmava a mesma coisa, isso se chama persona medici, e você acerta o alvo ao apontar que isso é uma fraude, mas, paradoxalmente, pode ser contraproducente gastar tempo falando ou explicando a teoria. Jung escreveu muitos livros e possui realmente uma teoria bastante complexa, veja a minha dificuldade aqui na tentativa de ser claro, todavia, se o paciente insistir nisso, deve-se aquiescer ao menos em parte. Jung considerava essa postura que você aponta como sendo extremamente daninha e um obstáculo ao tratamento e que, a principal ferramenta que o terapeuta tem a sua disposição é a sua própria personalidade, por isso ele mesmo deve passar pelas agruras do processo de análise.

Como eu lhe disse, é provável que as minhas resposta apenas ratifiquem para você que a psicologia é uma grande fraude, já que não é possível fornecer um diagnóstico preciso e um prognóstico, pois estamos a mercê do inconsciente, mas é exatamente dessa maneira que as coisas são. Seria mais fácil se não fosse assim, mas os fatos mostram isso, e quem se dispõe a ser um analista deve abdicar do desejo de curar, certamente ele deve se esforçar para ajudar, mas, paradoxalmente, o desejo de curar barra o processo, pois ele é algo espontâneo. No mesmo livro que lhe citei antes Jung diz algo interessante sobre o papel do analista e eu finalizo com isso. Disse ele

A paciente do escaravelho se encontrava em uma situação “impossível”, porque seu tratamento estacionara e parecia não haver saída para o impasse. Em tais situações, quando bastante sérias, costumam ocorrer sonhos arquetípicos que revelam alguma possibilidade de progresso no qual não se teria pensado. É esta espécie de situações que constela o arquétipo com grande regularidade. Em determinados casos, o psicoterapeuta, portanto, se vê obrigado a descobrir o problema racionalmente insolúvel à luz do qual o inconsciente do paciente dirige o seu curso. Uma vez descoberto este problema, as camadas mais profundas do inconsciente, as imagens primordiais são ativadas, e o processo de transformação da personalidade entra em andamento. (Jung, 2000, p.18, grifo meu)

Espero ter podido, de alguma maneira, lhe dar alguma resposta, é preciso que eu diga que compartilho de sua irritação e preocupação, mas também é preciso que você compreenda que há uma incomensurabilidade entre medicina e psicologia, por isso suas comparações entre uma e outra acabam sendo descabidas. Mesmo assim, isso não retira o valor de sua crítica e de seus questionamentos, se mais pessoas se questionassem certamente haveria menos charlatões, e, com pesar, devo admitir que entre os “junguianos” existem muitos charlatões. Outras teorias ou abordagens lhe darão outras respostas, talvez até mesmo respostas mais convincentes, tentei ser tão honesto e sincero quanto você foi e, espero, não ter usado das falácias que apontou.


Ab Imo Pectore

Heráclito Aragão Pinheiro, Fortaleza, 16/04/2014

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