sábado, 13 de outubro de 2012

500 Dias Com Ela (500 Days of Summer)




O título do filme em português é explicativo e descritivo enquanto o título original, que poderíamos traduzir de maneira mais literal como 500 dias de Verão, é metafórico, e tal metáfora é importante para se compreender a narrativa do filme. Summer (verão) é o nome da protagonista (a garota hipster perfeita Zoey Deschanel), e a narrativa inteira do filme – que tenta não ser linear, mas composta de idas e vindas no tempo – é pontuada por gravuras que sutilmente associam os estados de ânimo, os humores do outro protagonista (a quem a metáfora se dirige) Tom. Essa pontuação sutil que mostra o relacionamento de ambos (com foco em Tom) como o ciclo das estações é importante para se compreender o intuito do diretor e dos roteiristas. Principalmente quando a pequena árvore que sempre aparece na gravura que pontua os dias (e as estações) volta a ficar florida e a contagem recomeça quando ele conhece uma nova garota, o ciclo inteiro se reinicia. Há algumas leituras possíveis, a primeira é a mais obvia e talvez por isso a mais verdadeira, nossos sentimentos e nossas relações com as pessoas, especialmente as relações amorosas, possuem um traço coletivo muito forte, todos em algum momento se apaixonam (triste de quem foge a essa regra) ou ao menos têm que lidar com os dilemas relacionados ao femino/masculino. Assim como as estações, isso é algo que afeta a todos, inescapável, o que podemos fazer é reagir de maneiras mais ou menos individuais a isso. Esse é um dilema importante no filme, a maneira como lidamos com isso (o amor e suas consequências) e o que determina a forma como lidamos com isso, o que molda a nossa percepção desse fenômeno.

Além disso, a metáfora das estações, que sutilmente conduz o olhar do espectador em meio aos dias bons e ruins de Tom junto de sua amada Summer, traz um significado interessante de que o amor, a paixão, o sofrimento relacionado a tudo isso, é algo de natural, ou representa a natureza em nós, um aspecto que a cultura não foi capaz de suprimir e com o qual temos de nos haver. Nesse sentido, da maneira como lidamos com essa força viva da natureza em nós que se manifesta como os sentimentos que nos transformam em joguetes, aparentemente Summer e Tom representam reações opostas quase antípodas. Summer é o cinismo, a negação do romantismo, a aceitação de que o universo não possui qualquer sentido, de que tudo não passa de coincidência, de que o amor não é uma força cósmica, ela chega mesmo a afirmar que o amor não existe. Summer seria a anti-heroína romântica, que nem mesmo crê no amor, mas, como veremos a atitude dela é uma pose, e muda radicalmente no decorrer do filme, não em virtude dos esforços empreendidos por Tom, mas em virtude do destino e seus caprichos, da força cósmica que é o amor e seu jogo eterno de gato e rato dentro de nossos corações. Tom é a “heroína romântica” do filme, ele acredita no amor, acredita que só poderá ser feliz quando encontrar “a” garota, a mulher de sua vida, um sujeito sensível e adorável, presa fácil de seus humores, e extremamente sentimental, chegando quase a beirar o ridículo e a caricatura, o que só o torna ainda mais adorável aos olhos do público. Eles formam um par antagônico cinismo/romantismo.

O filme parece ser, a princípio, uma crítica, ou mesmo uma paródia séria, das comédias românticas de Hollywood, ele se inicia afirmando que “esta é uma história em que o garoto conhece a garota” a imagem com a qual o filme se inicia, do dia 488 é enganosa, devido a um ícone da cultura estadunidense, o anel de noivado, e o fato dos dois protagonistas estarem de mãos dadas ele sugere o final feliz tradicional: casamento, mas o narrador imediatamente contradiz a imagem. Há aqui uma tentativa deliberada de confundir, de criar duas narrativas que se assemelham, mas que fundamentalmente encobrem uma a outra levando a uma sensação de confusão entre a imagem (o poder sentimental imediato da percepção) e a razão (representada no filme pelo narrador). Nesse momento os protagonistas são apresentados, a crença de Tom no amor romântico é creditada a exposição a música pop britânica melancólica, e ele é apresentado (não pelo narrador, mas de maneira sutil e inteligente através de imagens) como uma personalidade introvertida e prometéica.

Summer é apresentada como o oposto exato de Tom, e o fato principal que marca a sua vida na infância e a define como personalidade é a desintegração de sua família, desde esse momento ela passa a amar apenas duas coisas: seu longo cabelo negro e como ela nada sente ao facilmente cortá-lo. Summer é cínica, insensível e não compartilha das crenças românticas de Tom. As imagens a descrevem como extrovertida e epimetéica, espontânea cheia de vida e carismática. Durante todo o filme ela encarna o ideal da mulher moderna, independente, que pode agir como os homens agem, que pode não se apegar, não ser sentimental e ter relações casuais e superficiais. Nesse sentido, ela é mais viril do que Tom, um sentimental sensível. Ela toma todas as iniciativas no filme, ela dá o primeiro beijo, ela pergunta a Tom se ele gosta dela não apenas como amiga, e ela coloca um ponto final definitivo na relação. Tom possui os traços que seriam tradicionalmente mais comuns na heroína, ele sofre por amor, ele é “vítima” da insensibilidade de Summer, há uma inversão comum aqui de papéis. Summer assume o discurso tipicamente masculino da independência e liberdade e Tom o interesse pelo relacionamento, mas isso é mera fachada.

O narrador prossegue, “essa é uma história de ‘garoto conhece a garota’, mas você deve saber de antemão, essa não é uma história de amor”. Essa é uma premissa falaciosa do roteiro, pois de maneira inteligente o diretor tenta subverter certas convenções desse tipo de filme, apenas para reafirmá-las ainda com mais força. De uma maneira sutil e insidiosa, a narrativa mostra que a atitude de Summer, de independência masculina, só pode causar sofrimento e tristeza. Quando os dois se unem, parece começar a surgir um equilíbrio entre as crenças de um e o cinismo da outra, mas novamente isso é uma prestidigitação, um truque barato, e o velho amor romântico é uma vez mais reafirmado. Com o sofrimento pelo qual passa Tom, ele começa a adotar os pontos de vista de Summer e se tornar um cínico, abandonando seu estado inicial de romantismo e sua crença no destino.

Tom é um arquiteto frustrado, trabalha escrevendo cartões e é muito bom nisso. Ele é sensível e criativo, mas ele é bom em um trabalho que não é seu caminho de bem aventurança, não passa de um emprego, aquilo que foi possível. Tom carrega essa frustração por todo o filme, e isso o afasta ainda mais de Summer. Summer, inconscientemente, em muitas de suas atitudes que parecem ferir Tom procura na verdade elevá-lo, sua mediocridade lhe é insuportável, e quanto mais ele se curva a seus caprichos ao invés de se colocar com mais força e virilidade, mais ele se torna pusilânime aos seus olhos. O problema central é que Tom não é medíocre, mas ele escolheu viver muito abaixo de suas possibilidades, numa confortável vida sem desafios, deixando uma venenosa “vida não vivida” pairando ao redor dele, muito do que ele é ou poderia ser estava nas trevas de sua alma, irrealizado e clamando por realização. Isso fica claro ao final do filme, quando numa festa na casa nova de Summer com ambos já separados ela o elogia dizendo que ele poderia ser um ótimo arquiteto, mas ele apenas faz piada com sua atual profissão.

A profissão de Tom é uma metáfora fundamental. Escrever cartões sentimentais para todas as ocasiões, de feriados a nascimentos, ou mesmo cartões para serem usados no caso de falecimentos. O filme algumas vezes peca pela tendência típica de Hollywood de explicar. Há no filme uma vulgarização do pensamento Frediano, o Deutung (uma interpretação que explica reduzindo a causa) surge logo no início para que o espectador compreenda as motivações mais íntimas e secretas de seus personagens. Importa igualmente suas influências, nesse sentindo é que está a vulgata. Não estamos ainda no campo do freudismo, mas da teoria Freud-Bleuler do trauma. As influências externas são cruciais e explicações de primeira ordem. Summer é traumatizada pela separação dos pais, e Tom sofre a influência decisiva da cultura Pop (no qual se inclui Hollywood) que vende a ele uma visão de mundo romântica que cria expectativas que não correspondem à realidade. Teríamos aqui uma crítica? Não é o caso como mostra o final do filme. Ao final Summer se converte ela mesma em heroína romântica, ela abraça os ideais de Tom e é redimida por eles, e quando o agora incrédulo Tom, descobre a redenção de sua amada, seus ideais retornam com mais força e ele redescobre o amor e o ciclo se reinicia.

A crítica a visão de mundo Hollywoodiana do amor cai por terra e essa mesma visão de mundo ganha status de verdade. O mundo não é um lugar sem sentido, existe o amor para dar sentido à existência. Tom, ao se perder de Summer, parece se encontrar consigo mesmo, desiste de sua profissão com um discurso um tanto patético, resolve correr os riscos de viver o seu sonho e quando faz isso o universo o premia com a mulher dos seus sonhos. Um dos amigos de Tom representa uma crítica mais contumaz a nossa tendência a idealização. Tom tem dois amigos, um deles nunca conseguiu namorar, o outro namora a mesma garota desde o colégio (segundo ele mesmo, teve sorte) ao falar da mulher de seus sonhos há um claro contraste entre sua namorada e sua idealização, mas ele termina dizendo que sua namorada é melhor, pois ela é real.

Tom se aconselha sentimentalmente com sua irmã de doze anos, uma menina muito parecida com Summer, decidida, que teve vários namorados e bem mais centrada que Tom. Por essa metáfora vemos o quanto da vida de Tom não foi realmente vivida, o nível de maturidade de seus sentimentos está abaixo do de uma garotinha de 12 anos. Ele é vítima de seu sentimentalismo. Mas ao final o filme coloca tudo em seu devido lugar, Summer escapa ao determinismo de sua infância e se torna (numa história paralela) uma heroína romântica e Tom percebe que havia uma verdade fundamental na visão de mundo que o alimentou em sua infância introvertida. Ao final ele age com virilidade, ele toma a iniciativa e convida a garota para sair, ele não se veste mais como garoto, mas com roupas de homem, um terno preto, mesmo seu cabelo muda. Sutilmente as imagens marcam seu amadurecimento, sua dura passagem das idealizações da infância para a maturidade, mas paradoxalmente, são essas mesmas idealizações que continuam guiando a sua vida, mas agora sem sufocar seu crescimento e virilidade.

Tom padece pelo que ele é. Pela sua incapacidade de lidar com seus próprios sentimentos. Certa feita Jung afirmou que quando nos apaixonamos aquela pessoa de carne osso, aquela mulher real, torna-se a depositária de nossa alma, e representa para nós uma tarefa. Summer ensina a Tom as qualidades de independência, ação e decisão, o contato com ela o tira de seu marasmo. Inspirado por Summer ele se torna ainda melhor em seu trabalho, fundamentalmente o seu trabalho é expressar sentimentos pelos outros, uma vulgarização do verdadeiro trabalho do artista. Ele se torna bom nisso, pois passa a ter de lidar com seus sentimentos encarnados numa mulher real, passa a ter de lidar com seus medos e limitações e, por fim, ele renega seu trabalho. Quando ele finalmente passa a ser capaz de se expressar, e o faz com clareza e coragem em seu patético e ainda sentimentalóide discurso de demissão, seu trabalho se afigura insuportável. Esse poderia ser visto como um momento de crítica, e o é em um nível muito sutil, mas paradoxalmente o filme caminha para reforçar os ideais burgueses. Todavia, eu mesmo não sou tão pessimista com relação à película, e enxergo aspectos positivos, mas falarei disso adiante. A lição de Summer se concretiza em sua ausência, ao queimar nas chamas do afeto e sofrimento tudo o que é supérfluo vira fumaça e se dissolve, restam apenas os ossos de Tom, apenas o que fundamental e indestrutível. Não a toa ele desejava permanecer no marasmo, poucos têm a capacidade de emergir dessa treva, as 12 léguas de escuridão que lemos na epopeia de Gilgamesh.

Depois disso ele resolve ser ele mesmo, se arriscar, há uma lousa em sua casa, cheia de papeis e recortes, ela a torna “branca” tudo e removido, tudo é jogado fora e há uma metáfora importante, deve-se abrir espaço para o recomeço. A importância do esquecimento, de nos livrarmos de nós mesmos. Tom recomeça, e volta a ler sobre arquitetura. Em sua tristeza, antes desse momento, ele vai ver uns filmes europeus chatos, e neles ele sempre é o protagonista, numa metalinguagem inteligente sobre a identificação, o verdadeiro poder desse tipo de filme romântico. Nesse sentido, há uma passagem em que, assim como Tom se viu na pele dos protagonistas, eu me vi na pele de Tom. Quando ele presenteia Summer com um livro importante para ele. O gesto é de doação daquilo que há de mais precioso, daquilo que traduz a sua alma, ele diz tome, me leia, me compreenda, me possua. Claro que um gesto tão grandiloquente e exigente, intenso em demasia não funciona como o esperado. Como eu disse, o gesto calou fundo em mim, pois recentemente fiz presente de dois livros a duas garotas com idêntico resultado, não deem livros, flores, o segredo são as flores. Flores murcham e morrem, livros persistem, livros são complexos, demandam uma tradução, são exigentes, você precisa gastar tempo com eles, se dedicar a eles. Flores lhe fazem sorrir e em seguida podem ser postas de lado e morrer em paz num canto esquecido. A não ser que um espinho machuque seu dedo flores são inócuas, livros não, livros deixam marcas, marcas na alma que não podem mais ser retiradas, isso assusta. Tom, quando se torna sentimentalmente mais complexo dá a ela não um cartão para traduzir seus sentimentos, mas simbolicamente um livro.



A mensagem do filme, no frigir dos ovos é a de que mulheres querem homens e homens querem mulheres. O sentimental e indeciso, quase afeminado Tom não é o que Summer procurava, e a Decidida, independente e viril Summer não podia ser a garota ideal para Tom. Em um dado instante, Tom se torna um homem e Summer uma garota, nesse momento o destino lhes envia a pessoa certa. Vejo dois níveis possíveis de entendimento aqui, paradoxais mais ambos possíveis. Um positivo e outro negativo. De maneira negativa poderíamos afirmar que o filme reforça e reafirma os valores patriarcais e o individualismo burguês. A mulher independente, descrente do amor e dos valores familiares, de atitude viril e voltada para o trabalho se casa. A instituição do casamento surge como promessa de final feliz, e mesmo Tom reencontra seu caminho para o amor romântico, para a certeza de um sentindo cósmico transcendente para a existência, há um viés ideológico no filme.

Por outro lado, num sentido mais profundo (paradoxal, mas não contraditório) o filme me parece surgir como compensação sintomática a traços de nossa cultura que são geradores de angústia. Como gostava de afirmar Campbell, nós estamos em queda livre em direção ao futuro. Todos nós temos a missão de imbuir de algum sentido a nossa vida, de torná-la significativa e digna de ser vivida sem a ajuda das grandiloquentes imagens da religião. Tom encontra esse sentindo no romantismo da música inglesa adocicada. A crítica racional perde a força se percebermos que essa crença também significa, e isso talvez seja até mais importante, uma vivência emocional. Ora, se isso imbui minha vida de sentido em meio ao caos de vazio e aridez de nosso mundo, quem se importa se isso é algo irracional? É certo que tal crença, que se comporta como símbolo subjetivo, é um pobre sucedâneo a uma religião genuína ou a uma cosmovisão genuína, mas é isso que Tom possui. Não podemos desprezar e destruir algo tão precioso para ele apenas por que não nos parece bom o bastante.

Há mais, Tom é um adulto relutante, em termos sociais ele é um adulto: não mora mais com os pais, terminou a faculdade e tem um emprego. Em termos biológicos ele é um adulto, já tem idade para ser um adulto, seu corpo é o corpo de um adulto. Mas como recentemente me apontou meu dileto amigo e psicanalista Leonardo Barros, a adolescência é fundamentalmente psíquica. Nossos dois protagonistas estão em apuros, Summer e Tom, o tema mítico fundamental que se expressa de maneira moderna nessa película é o mesmo que se pode ver no conto de fadas da princesa e o sapo. Diferente do conto, eles não terminam juntos, mas um redime o outro. Tom devolve a bola de ouro de Summer que havia caído no poço e Summer arremessa Tom Brutalmente a uma parede e faz dele um homem e não um sapo enfeitiçado, preso nessa forma medonha. O casamento é mais do que uma simples instituição, por mais que ele tenha se degenerado em mera obrigação social sem sentido ele também possui um profundo valor simbólico que nos escapa, pois as imagens grandiloquentes do simbolismo judaico-cristão que o imbuem de vida e sentido perderam a força para nós. Nesse sentido temos uma tendência compensatória que, apesar do cinismo, apesar da tentativa malfadada de crítica, surge como final feliz. É a oportunidade, o sacramento de participar da vida de outra pessoa. Num mundo tão cínico e solitário como o nosso quem poderia dizer que em seu sentido mais profundo e simbólico o casamento é algo ruim? Abusus non tolit usum, e como dizia Jung, não se pode culpar a religião pelo que os homens fizeram dela.


Há igualmente o embate entre masculino e feminino. O embate é sutil no filme, e o principal a se compreender, e o filme deixa isso patente, é que os homens não são exclusivamente masculinos e as mulheres não são exclusivamente femininas. Mesmo com o tom intimista, no filme esse embate se dá numa relação real homem/mulher, o que é legítimo. Mas esse embate se dá igualmente em nosso peito. Em dado momento Summer sai de cena e o embate persiste em Tom. Se o caráter ideológico ou o caráter simbólico prevalecem no filme, a resposta a essa indagação eu deixo ao leitor. As situações mostradas no filme são arquetípicas e falam a cada um de nós em níveis diferentes. Há muitos olhares e muitas visões, a cena da alegria de Tom após fazer sexo com Summer é excelente, ela atesta que importam menos os objetos e mais a maneira de apetecer. Pessoas diferentes certamente enxergarão o filme de maneira diferente, e esse texto corresponde certamente a um dos pontos de vista possíveis. Creio que os simples tendem a enxergar a simplicidade e os complicados a complexidade, ambas as posições possuem verdade, mas nunca toda a verdade.





Um comentário: