quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Uma análise psicológica do mito moderno do Zumbi


O que pretendo com esse texto é realizar uma leitura psicológica do zumbi. Vemos hoje uma imensa atenção dada a essa figura, em filmes, quadrinhos, vídeo games livros e séries de tevê. Desde o aclamado “The Walking Dead”, até o filme que apresenta como protagonista um zumbi adolescente apaixonado por uma humana e que procura pegar carona no sucesso de “Twilight”. Os exemplos do aparecimento dos zumbis na cultura pop poderiam se estender muito mais, desde a série de quadrinhos que transformava todos os heróis da Marvel Comics em zumbis (Marvel Zombies), até o Anime nipônico “Hig School of the Dead” (existe até mesmo um cardgame baseado em “Resident Evil”). Em vista desse enorme interesse sobre essas criaturas desmortas me vi impelido a pensar sobre o que significa um tal interesse por parte de tantas pessoas. É importante salientar de início que esse esforço deve ser entendido apenas como um esboço inicial, um torso inacabado por assim dizer.

Um dos pontos interessantes da atual “mitologia” dos Zumbis diz respeito ao “apocalipse zumbi”, que seja um acontecimento, por vezes inexplicável, em que a maior parte da população da terra é repentinamente transformada em zumbis comedores de carne humana. Na maioria dos exemplos atuais – como “The Walking Dead” – não há qualquer explicação para esse fenômeno, importam seus efeitos, já em “Resident Evil” a origem dos zumbis é o que movimenta toda a trama. Toda a sociedade como a conhecemos é destruída por essa praga de mortos vivos e os sobreviventes se veem obrigados a lutar incansavelmente para se manterem vivos e tudo o que antes era dado como garantido se desfaz como fumaça. Nesse cenário macabro, mesmo outros humanos (vivos) premidos pela fome, medo e instinto de sobrevivência, se tornam antagonistas fatais e toda a possibilidade de laço social fica impedida ou, ao menos, seriamente ameaçada. Nesse quesito, apocalipse zumbi, temos como o exemplo mais bem acabado a revista em quadrinhos, posteriormente adaptada para a tevê “The Walking Dead”, bem como a série de filmes baseados nos jogos de videogame “Resident Evil”.

É extremamente importante salientar, que em todos os casos atuais de aparecimento de zumbis eles não são criaturas mágicas, mas o resultado de uma doença, um vírus (como no caso de Resident Evil), ou algo do gênero. Há sempre uma causa física, material, biológica para o surgimento dos monstros. O despretensioso anime “Kore ha Zombie Desuka” é uma exceção, seu protagonista zumbi é uma criatura criada por magia, bem como um filme da década de oitenta em que os zumbis apareciam em virtude da profanação de um cemitério indígena, ou ainda, os “zumbis originais” da cultura pop, que eram criaturas desmortas criadas pela magia do Vodu haitiano. Nos casos atuais, todavia, como já salientei, há sempre uma causalidade material, orgânica e pseudocientífica para o aparecimento da praga de zumbis, mesmo que isso seja algo que aparece sous entendu na trama.

Antes de analisar esse aspecto, do apocalipse associado aos zumbis, ou causado por eles, é preciso que a criatura seja caracterizada. Em suas encarnações mais recentes os zumbis são cadáveres animados, terrivelmente desfigurados, capazes de se mover (algumas vezes de maneira desajeitada, outras vezes com agilidade sobre-humana) que perdem toda e qualquer memória ou vestígio da personalidade que tiveram em vida, que são impelidos unicamente pela fome. Os zumbis da década de oitenta, que apareceram nos filmes e na tevê, tinham um predileção especial por comer cérebros humanos, já os atuais são bem menos exigentes e comem carne humana de uma maneira irrestrita. Os zumbis parecem não se interessar por presas mortas (convenientemente eles não se devoram uns aos outros), mas comem de maneira voraz e horrenda apenas presas vivas, com o coração ainda pulsando. Algumas vezes, na realidade na maioria dos exemplos, o zumbi é contagioso, se alguém for mordido, mesmo que escape a sanha assassina do monstro, ficará infectado e morrerá em pouco tempo, para logo se juntar a legião dos mortos. Esse aspecto está presente praticamente em todos os exemplos hodiernos do zumbi na cultura pop, creio que uma das poucas exceções seja o zumbi protagonista do anime de ação, romance e comédia “Kore ha Zombie Desuka”, que mantém suas memórias e não é contagioso (é simplesmente um morto que anda e fala).

Marie-louise Von Franz ao analisar as fantasias apocalípticas em sonhos e imaginações ativas de seus pacientes, ou seus paralelos em mitos e principalmente conto de fadas, chega a duas interpretações psicológicas que me parecem pertinentes para esse estudo. Certamente essas interpretações não são as únicas possíveis, mas em termos heurísticos são as que mais nos fornecem uma possibilidade de estabelecer conexões de sentindo entre os fenômenos que estou analisando. A primeira dessas duas interpretações que sublinho aqui está em seu livro O Gato, um conto de redenção feminina. O contexto psicológico é um pouco diverso, por isso precisamos nos aproximar dessa interpretação com cuidado, mas, cum grano salis, ela nos é útil para começarmos a pensar. A interpretação de Von Franz é a de que todo o inconsciente coletivo está agitado, há uma desarmonia entre o comportamento consciente do coletivo e o que o inconsciente está pensando em destruição. Significando, igualmente, que o incosciente coletivo foi tão maltratado por nossa incompreensão que se rebela contra nós, se irrita com a falta de atenção que recebe. Ou dito de outra maneira, não temos acompanhado as tendências significativas do inconsciente, se você peca contra o inconsciente, ele se apossa de você. Estamos falando aqui da força numinosa das dominantes do inconsciente coletivo, aquilo que Jung denominou de arquétipos. Devemos compreender esses conteúdos arquetípicos como potências coletivas psiquicamente reais e objetivas – lembrando que para Jung tudo o que age que atua é real – com as quais não podemos nos identificar, mas as quais devemos tentar tornar favoráveis, nos relacionando com elas. A identificação da consciência com essas forças significa apenas presunção e inflação.

A relação da consciência com o inconsciente se dá de maneira compensatória e complementar – essa é uma das hipóteses basilares de Jung – nesse caso, por meio das fantasias apocalípticas que se manifestam criativamente na cultura pop sob a forma do fim do mundo invadido por zumbis vorazes, devoradores de carne humana, temos a oportunidade de perceber, em termos coletivos, a quantas anda a relação com esse pano de fundo inconsciente inexpresso, com o fato psicológico real.  Ex exposistis, o inconsciente responde de maneiras compensatórias as disposições e atitudes da consciência. Ergo, a maneira como essas figuras se apresentam dependem da atitude consciente. Uma atitude negativa para com o inconsciente gestara imagens assustadoras, uma atitude positiva engendrará o contrário, seres prestativos. No presente caso, a fantasia criativa se expressa de maneira horrenda e pavorosa, com cadáveres putrefatos animados por uma avidez lunática, desprovidos de qualquer consciência humana, irracionais e selvagens como animais predadores e sedentos por sangue e famintos por carne humana. A figura do zumbi, e seu apelo tão forte em nossos dias, fazendo vibrar em tantos de nós uma corda comum em nossa alma é, ao meu ver, sintoma de nossa relação com o inconsciente coletivo.

Como salientei anteriormente, é significativo que nossos zumbis atuais sejam tão marcadamente materialistas e desespiritualizados, são pessoas infectadas por um vírus, ou em filmes mais antigos, uma substância química capaz de trazer os mortos de volta a vida nesse estado lastimável, ou mesmo, em filme recente chamado Chernobyl, cadáveres animados pela radiação proveniente do acidente nuclear. Todo e qualquer aspecto espiritual está ausente dessas histórias (uma exceção são os Wights de Game of Thrones), e os personagens ainda vivos precisam lidar com a dor e o sofrimento de terem perdido tudo e ainda se verem acossados por tais monstros sem qualquer auxílio de ordem espiritual. Nesse sentindo, “The Walking Dead” é emblemático, pois lentamente a sanidade dos personagens vai sendo corroída, assim como sua humanidade e noções de moral. Nessa série televisiva, e nos quadrinhos que lhe deram origem (o mesmo se dá no anime “The Highschool of the Dead), vai se tornando cada vez mais patente que a situação em que se encontram é completamente amoral, e o desespero que isso acarreta passa a se traduzir num crescente individualismo, numa busca solitária e quase irracional de simplesmente viver mais um dia a qualquer custo.

Jung, ao analisar nosso Zeitgeist (espírito da época) conclui que nosso tempo foi varrido por uma onda irracional da preferência sentimental e universal pelo mundo físico. A metafísica do espírito foi suplantada pela metafísica da matéria. A despeito do fato, de que tanto uma explicação quanto à outra (materialista ou espiritual), são igualmente lógicas, igualmente metafísicas, igualmente arbitrárias e igualmente simbólicas. As duas “realidades” (material e espiritual) são vivências psíquicas que se sustentam num fundamento obscuro e incognoscível, não existindo realidade absoluta. Essa onda irracional é uma propensão sentimental, que por motivos inconscientes, age com poderosa força de sugestão sobre os espíritos mais fracos de nosso tempo. “Descobriu-se” no século XIX a verdade inquestionável de que tudo provem de causas materiais, anacronicamente descobrimos, ao nos debruçarmos sobre o passado, que era uma presunção intelectual de nossos antepassados supor que o homem possuía uma alma imortal, de natureza divina, que pode até mesmo levar uma existência independente do corpo, que existem espíritos incorpóreos e um mundo espiritual para além de nossa realidade empírica. Ainda assim, aqui estamos nós, acossados por fantasias apocalípticas onde zumbis (mortos que voltam à vida, não espíritos, mas cadáveres, meros corpos animados por algum quimismo) e podemos afirmar abobalhados, como em Goethe “se o ouvido em mim se fechar/No coração o medo vai medrar/A cada hora mudo a forma do meu ser/ E assim exerço meu despótico poder.”.

Tudo o que é extramundano se converte em realidades imediatas; o fundamento das coisas, a fixação de qualquer objetivo e mesmo o significado final das coisas não podem ultrapassar as fronteiras empíricas. A impressão que a mente ingênua tem é a de que qualquer interioridade invisível se torna exterioridade visível, e que todo valor se fundamenta exclusivamente sobre a pretensa realidade dos fatos. (JUNG, 1986, p.284, grifo meu).

Mesmo a mais profunda desconsideração da consciência para com o inconsciente não anula seu poder, apenas torna a sua manifestação mais mefistotélica, ou no nosso caso, pavorosa. Há, por certo, um medo generalizado do inconsciente, que parece ter se intensificado em nossos dias e que se manifesta na fantasia criativa sob a forma da ameaça dos zumbis. Persiste, todavia o fato autêntico de que nosso mundo real se encontra ameaçado por uma irrealidade fantástica, aqui reside uma superstição primitiva que encontra solo dos mais propícios para deitar raízes no coração do moderno homem civilizado: a tendência quase universal para concretizar as fantasias do inconsciente. Toda a aversão à fantasia, assim como a desvalorização crítica do inconsciente nascem do medo que se tem dessa tendência à concretização. Ao invés disso, deveríamos ser capazes de levar a sério as fantasias provenientes do inconsciente, encará-las como um desafio ao homem todo e ser capazes de interpretá-las ao invés de simplesmente tomá-las ao pé da letra, ou como diria Campbell, de maneira denotativa. É preciso ter em mente que a aparência não é a coisa mesma, mas apenas a sua expressão, na podemos confundir a imagem da fantasia com o que atua por detrás dela (JUNG, 1997). Me impressiona ver, por exemplo, serem veiculadas no Facebook imagens e piadas relacionadas ao “desejo secreto” que muitos alimentam de que ocorra uma hecatombe zumbi, vemos em ação essa tendência a concretização, isso, infelizmente não é sinônimo de se levar a sério o inconsciente.

A outra interpretação dada por Von Franz a esse tipo de fantasia apocalíptica é que as pessoas em geral se encontram num estado de tal tédio e mal estar que anseiam por qualquer coisa que possa tirá-las, mesmo que de maneira forçosa e violenta desse estado, mesmo que se trate de uma catástrofe, de uma guerra ou hecatombe, uma solução violenta para tirá-las da insuportável estase de seu dia a dia e do vazio intolerável de suas vidas. Isso casa perfeitamente com o fascínio provocado pela ideia de um apocalipse zumbi, ou mesmo com o fascínio que certas pessoas têm com relação a filmes e séries de prisão, com seus dramas terríveis e reviravoltas violentas. É uma reação à sensação que Campbell costumava chamar de “terra devastada”, o mesmo Campbell gostava de dizer que estamos todos em queda livre em direção ao futuro, pois nossa sociedade carece de mitos efetivos. É o mito que proporciona um campo onde podemos nos situar, o que os mitos fazem é apontar o transcendente além do campo do fenômeno, como um compasso com uma ponta na esfera do tempo e outra na eternidade. A eternidade a que o mito se refere é a dimensão transcendente do aqui e agora, a eternidade não tem relação com o tempo, na realidade o tempo nos exclui da eternidade. A “terra devastada” é estarmos excluídos da eternidade, desamparados diante dos fatos externos que parecem ter um poder absoluto sobre nós, nos esmagando sem que exista um contraponto na alma capaz de nos manter íntegros e nos conectar com esse aspecto da realidade que ultrapassa o campo empírico.

Deixando por hora de lado o apocalipse zumbi, nos fixemos na figura do zumbi. Confesso que tenho uma terrível aversão a ela. O zumbi não possui o fascínio do vampiro, que é um indivíduo preso num dilema existencial terrível de se manter humano ou ceder aos seus instintos bestiais de predador (ao menos em suas encarnações mais recentes), o fascínio do vampiro, ou mesmo do fantasma, vem do fato de que se tratam de indivíduos, personalidades, com conflitos e idiossincrasias, esse não é o caso do zumbi. O zumbi não passa de um corpo putrefato, incapaz de sentir dor, medo ou cansaço e movido unicamente pela fome, ela não possui alma ou personalidade. Seja lá quem ele foi um dia, isso se perdeu para sempre, suas roupas rotas e o que resta de sua carne são os únicos monumentos à personalidade que ele foi outrora. O zumbi carece inteiramente de qualquer conflito moral, carece completamente de liberdade e individualidade, ele não passa de mais um numa horda infindável de mortos famintos de aspecto repugnante. Fundamentalmente, o zumbi carece de consciência. Ele é uma personificação da fome e instinto predatório e nada mais. Em si mesmo, é uma criatura das mais desinteressantes.

Que paralelos poderíamos encontrar para o zumbi? Bem um dos primeiros paralelos a essa figura tão grotesca da cultura pop é outra criatura dos filmes apocalípticos: as máquinas destruidoras do “Terminator” o Exterminador do Futuro. Assim como os zumbis as máquinas são completamente inumanas (mas podem se assemelhar a nós), é curioso que no filme as máquinas soldados sejam esqueletos de metal, guiadas por uma espécie de consciência comum, como uma colmeia onde toda a individualidade é esmagada. Mutatis mutandis, assim como os zumbis, as máquinas são seres inorgânicos, feitos de metal frio. Ora, os zumbis estão mortos, não passam de carne putrefata, são autômatos feitos de carne podre. Nesse aspecto, de serem autômatos o paralelo é muito similar. Como seres contagiosos, e que seu contágio resulta na aniquilação da individualidade, me vem vivamente à lembrança o antagonista de Neo em Matrix, o agente Smith (sobrenome extremamente ordinário e comum no mundo anglo-saxão) capaz de infectar (ele próprio se converte em uma espécie de vírus no mundo virtual da matriz) qualquer um e transformá-lo em uma cópia exata de si mesmo, apagando qualquer traço de individualidade anterior.
Outro paralelo possível está na tradição budista. Baseio-me aqui nos ensinamentos de S.EMA. Chagdud Tulku Rinpoche, compilados por Chagdud Khadro. De acordo com os ensinamentos sobre os bardos, existe seis possibilidades de renascimento na crença budista: o reino dos infernos, o reino dos espíritos famintos (pretas, ou gakis em japonês), o reino animal, o reino dos deuses invejosos (titãs ou asuras), o reino dos deuses (devas), e o reino humano. Interessa-nos o reino dos espíritos famintos (ou espíritos carentes). Nesse reino as criaturas são consumidas por uma fome e sede insaciáveis, possuem corpos deformados com bocas minúsculas, ou pescoços estreitos e barrigas imensas e sofrem de horrendas privações, perpetuamente acossados pela fome e incapazes de aplacá-la. O karma que os conduz a esse renascimento tão desfavorável é a avidez, mesquinharia e o roubo. Nesse estado é impossível se alcançar o estado de liberação do sofrimento, o nirvana. Vários são os obstáculos a que possam saciar sua fome, alguns são queimados por dentro e por fora ao comerem qualquer alimento, outros enxergam a comida como substâncias revoltantes, enquanto outros conspurcam a comida ao seu toque. Assim como os zumbis de nossa cultura pop, essas criaturas são premidas por uma fome intensa e implacável, todavia o caráter mais espiritual desse estado salta aos olhos se comparado ao atroz materialismo do zumbi. Também não se caracteriza como um estado definitivo, mas assim que se esgota o karma, segue-se outro renascimento. Na moderna mitologia do zumbi, qualquer aspecto espiritual é completamente sonegado, a morte é um estado definitivo e grotesco, não há paz nem mesmo na morte.

Uma das fontes do horror dos zumbis é que eles são personificações do aspecto puramente material e desespiritualizado da morte: corpos putrefatos. Ainda assim, são corpos em decomposição que se movem, comem carne humana e nos ameaçam. São mortos inquietos e famintos que em sua avidez acabam por nos tornar como eles. Novamente temos aqui um indício da atividade compensatória do inconsciente coletivo. Todavia, esse não é, a meu ver, a principal fonte do horror e fascínio dos zumbis. Devo confessar que foi através de um pesadelo que me ocorreu o significado psicológico do zumbi, antes um completo mistério para mim. O zumbi representa um estado de absoluta massificação, de destruição do indivíduo e da possibilidade de vida individual, uma pungente metáfora para outra atitude muito comum no nosso tempo.

Em seu pequeno ensaio “Presente e Futuro” Jung reflete sobre a dificuldade da psicologia em se desembaraçar da antinomia “o individual não importa perante o coletivo, e o coletivo não importa perante o individual”, na realidade é totalmente impossível se desembaraçar dessa realidade, pois a própria alma é extremamente paradoxal, todavia, a psicologia precisa lidar com isso, pois é uma ciência (de linguagem universalizante e geral), mas que lida diretamente com o dado irracional que é o homem individual.

Uma formação em princípio científica baseia-se, essencialmente, em verdades científicas e em conhecimentos abstratos que transmitem uma cosmovisão irreal, embora racional, em que o indivíduo, como fenômeno marginal, não desempenha nenhum papel. Mas o indivíduo, como um dado irracional, é o verdadeiro portador da realidade, é o homem concreto em oposição ao homem ideal ou “normal” irreal, ao qual se referem as teses científicas. (...) as ciências naturais, em oposição às “humanidades”, impõem, portanto, uma imagem do mundo que exclui a psique humana real. (JUNG, 2011, p.16).

Vemos aqui o efeito daninho e perigoso do “pensamento estatístico”, pois sob o peso esmagador dos pressupostos científicos o indivíduo e a psique sofrem um nivelamento que distorce a imagem da realidade e a transforma em média ideal. Essa imagem estatística do mundo reprime o fator individual. Isso impede ou emperra toda a possibilidade de desenvolvimento moral do indivíduo. O mote romântico de que “tudo o que vive, vive individualmente” é esmagado aqui, mas permanece o fato de que a única vida real é a vida individual. A sentido e a finalidade da vida passam a ser imposto de fora para dentro do homem e decisão moral passa a ser progressivamente retirada do indivíduo, que passa a ser encarado como mera unidade recorrente, gerando uma caótica falta de identidade. “Quanto maior a multidão, mais ‘indigno’ é o indivíduo. quando este esmagado pela sensação de sua insignificância e impotência, vê que a vida perdeu o sentido (...)” (JUNG, 2011).

Disse certa vez Jung “O homem de hoje, que se volta para o ideal coletivo faz de seu coração um antro de criminosos”, lembrando ainda que há um complicador a mais, é preciso ter em mente que sem liberdade a moralidade é impossível, e que todo o progresso e todo o talento é individual, e a liberdade é diretamente proporcional a possibilidade de desenvolvimento individual. O complicador de que falava a pouco, consiste no fato de que tudo o que foi falado no que diz respeito a influencia da sociedade sobre o indivíduo é igualmente válido no que diz respeito a influencia do inconsciente coletivo sobre a psique individual, essa influência é invisível, diferente da primeira. Vemos aqui, na imagem do zumbi, a tendência do psique individual ao se deparar com problemas de ordens gerais, responder com motivos mitológicos, o zumbi me parece, pelo menos num primeiro momento, uma tentativa malfadada de compensação a essa ameaça que vem de “dentro e de fora” e que traz a promessa de aniquilação e esquecimento. Um zumbi não importa enquanto indivíduo, ele encontra na morte e reanimação uma espécie absoluta de massificação, de aniquilação da individualidade, ele representa uma ameaça real, e atua, cum grano salis, como um símbolo, pois parece que muitas pessoas se sentem atraídas por essa imagem justamente por esse motivo, mas de uma maneira apenas obscuramente pressentida.

Como disse no início, esse texto é apenas um torso inacabado e deve ser julgado dessa maneira pelos seus leitores, acredito que no futuro retornarei a ela para uma reflexão mais séria e profunda sobre o tema.

2 comentários:

  1. Excelente texto.
    "Significando, igualmente, que o incosciente coletivo foi tão maltratado por nossa incompreensão que se rebela contra nós, se irrita com a falta de atenção que recebe. Ou dito de outra maneira, não temos acompanhado as tendências significativas do inconsciente, se você peca contra o inconsciente, ele se apossa de você".
    Só mais uma observação de apoio: Em um dos clássicos de Romero, que eram mais virulentos em sua crítica ao nosso tempo, os zumbis surgiam porque o inferno estava lotado... e, na sua ausência de mente, refugiavam-se em um shopping.

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    1. massa, depois tu me passa esse filme para eu usar como paralelo quando ampliar o texto, pra mim o caminho é esse pensar os filmes, quadrinhos, desenhos animados, eles dizem muito sobre quem nós somos e a sociedade em que vivemos...

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