quinta-feira, 21 de junho de 2012

Sobre “deixar os estudos”




Uma imagem no Facebook me chamou a atenção e me levou a refletir. A referida imagem mostrava três fotografias: Bill Gates, Steve Jobs e Mark Zucerberg, todos eles homens que criaram grandes mudanças na área de tecnologia, comunicação e educação e alteraram para sempre a maneira como nos relacionamos com a tecnologia e com os nossos semelhantes. Goste-se ou não deles, os três são grandes inovadores. Pois bem, na imagem, ao lado da fotografia de cada um deles se lia: deixou os estudos. E por último, a fotografia de um mendigo e ao lado dela a frase: Você se deixar os estudos.
Obviamente a imagem tem valor de chiste, trata-se de uma piada que vem circulando pela rede mundial de computadores, mas convém recordar que o chiste é algo revelador, e que nos permite, por um instante que seja, observar coisas subterrâneas e que normalmente estariam veladas. Em virtude disso resolvi refletir sobre a mensagem veiculada por essa imagem jocosa.
A princípio me chama a atenção à expressão “deixou os estudos”, em minha opinião, o mais correto seria dizer que eles deixaram a escola, ou que deixaram a faculdade, mas nenhum deles jamais deixou os estudos. Steve Jobs, em seu “discurso testamento” deixou claro que ao deixar a aulas na universidade, que eram dispendiosas para seus pais e que não faziam sentido para ele ou tocavam a sua alma, se dedicou a estudar as coisas que realmente faziam sentido para ele, como por exemplo, caligrafia. Ele continuou estudando, e me arrisco a dizer que o fez até o fim de seus dias. O que me leva a ter a séria suspeita de que existe no senso comum a ideia de que só se estuda na escola, ou por que se está na escola, ou seja por uma demanda coletiva e não por um impulso individual.
Me parece também, que essa não é apenas uma “ideia” de senso comum, mas um tipo de funcionamento psíquico. Nem todos possuem o élan para estudar ou pesquisar, o que não constitui demérito, pois em nossa sociedade precisamos tanto de cientistas e professores quanto de bombeiros, atletas, policiais, soldados, músicos e artistas. Mas mesmo pessoas que normalmente não se sentiriam inclinadas a prosseguir estudando por possuírem outros tipos de disposições, talentos ou desejos, se veem obrigadas a estudar por décadas. Essas pessoas realmente estudam por que estão na escola, por se verem coagidas a isso, ou por compreenderem que precisam estudar até a universidade para poderem ganhar a vida ou terem o respeito de seus pares – seja isso falacioso ou não.
Umberto Eco, em seu livro “Como escrever uma tese” fala do fenômeno das “universidades de massa”, onde pessoas sem o necessário élan para o estudo e a pesquisa se veem forçadas a dispender anos a fio de suas vidas nos bancos da academia para poderem ganhar o seu sustento ou simplesmente em prol de um ideal social, o que transforma a academia num arremedo grotesco do que deveria ser. Essas pessoas estão presas ao que sir Ken Robinson chamou de “tirania do senso comum”, Campbell falava do Dragão onde em cada escama está escrito “tu deves”, e que devemos destruir para sermos nós mesmos. Em uma revista em quadrinhos do Thor, escrita pelo brilhante J. M. Straczynski, ele denominou esse mesmo fenômeno de “a tirania das vozes razoáveis”. A oposição a isso é a penosa e difícil tarefa de ser capaz de ouvir o próprio coração.
Mas para compreendermos o sentido mais profundo do chiste contido na figura que inspirou essa reflexão. Os três personagens retratados, mais o mendigo, não nos esqueçamos do mendigo, são portadores de novidades, grandes novidades, para o bem ou para o mal. Zuckerberg criou o Facebook onde esta imagem estava circulando. Bill Gates forjou a sua imagem e semelhança o mercado mundial de computadores pessoais, com um misto de gênio, oportunismo e algum plágio, e Steve Jobs, bem, Jobs foi em vida tão criativo que é difícil resumir em poucas palavras o quão inovador ele foi. Em resumo, estamos diante de três homens dotados de grande criatividade e de sensibilidade para perceber os rumos dos negócios, das artes e da cultura, visionários diriam alguns, mas creio que palavra chave aqui é criatividade.
Bem, uma coisa posso afirmar sem medo de errar, nossas escolas e universidades não nos preparam para sermos criativos. Creio que convém aqui ponderarmos sobre o nosso modelo de educação. Sir Ken Robinson, em suas brilhantes palestras no TED, falou por duas vezes sobre educação, ou mais propriamente nas dificuldades que nosso atual modelo de educação coloca para o florescimento dos talentos humanos e para o desenvolvimento da criatividade. Em sua opinião, temos um modelo de escola industrial, de manufatura, que se baseia nas ideias – falaciosas – de linearidade e conformidade. Uma analise mais minuciosa da imagem jocosa do Facebook mostra que a despeito dos três contraexemplos, a ideia que norteia a piada é da linearidade. Ora, se você completar seus estudos até a universidade você terá um bom emprego e uma boa vida, do contrário será um mendigo. É clara a noção subjacente de linearidade nessa piada. Os três grandes personagens são “a” proverbial exceção que confirma a regra. Mais sutilmente, a ideia de conformidade também se faz presente, todos precisam passar pelo mesmo processo de educação que leva ao mesmo fim: a faculdade.
Bom, talvez seja o momento de falar um pouco da minha experiência com a faculdade. A princípio eu decidi ser médico, na verdade eu nunca quis ser médico, eu queria prestar vestibular para medicina o que é muito diferente. Pois bem, naquela época há... Alguns anos atrás existiam duas fases no vestibular, eu era um ótimo aluno e passei com facilidade na primeira fase nas duas tentativas, mas veja, estranhamente, naquilo em que eu era realmente bom, a redação, eu reprovei. Como segunda opção, ainda mais tola do que a primeira, eu fiz veterinária, e entrei facilmente para essa universidade, que deve ser ótima para quem deseja ser um veterinário, o que não era o meu caso. O fato é que, na escola, eu fora preparado para ir para a universidade, ou melhor, para prestar o vestibular, e não para escolher uma profissão que me permitisse ver meus talentos florescerem. Bom, passei três anos na veterinária, gostava de cirurgia e era um ótimo aluno e fiz muitas coisas, mas aquilo, fundamentalmente era uma farsa. Como não consegui viver aquela farsa por mais tempo e, estando mais velho, começava a discernir o que queria realmente fazer decidi largar tudo.
Passei seis meses estudando em casa, pois achava que a escola não tinha mais nada a me ensinar, o que rendeu uma briga com meu irmão mais novo, e uma grande choradeira por parte de minha mãe e avó. Elas ligaram para o meu melhor amigo, Filipe Jesuíno, e disseram a ele que alguém devia conversar comigo, eu já não estudava mais, ao invés disso, passa o dia todo lendo no meu quarto. Como podem ver, o conceito de “estudo” da minha família é bem parecido com o da pessoa que criou a imagem que estou discutindo. Fiz vestibular novamente, fiquei em dúvida entre psicologia ou história, e acabei decidindo pela segunda opção, coisa de que não me arrependo. Sejamos francos, a faculdade de psicologia é uma droga, e a de história é bem mais séria e me deu uma sólida formação científica. Mas não pensem que se tratava do paraíso, não. Logo eu percebi uma coisa interessante acerca da faculdade: ela atrapalhava meus estudos. Bom, até hoje atrapalha, o doutorado tem se tornado um empecilho enorme aos meus estudos com uma série de exigências absurdas e de uma lógica mais do que questionável que enxerga a produção acadêmica como uma linha de montagem industrial, da qual, eu supostamente faço parte.
Bem, eu represento um “tipo” muito específico, e minha experiência pode ser similar a de centenas, talvez milhares de pessoas, mas certamente, não de todas. Algumas pessoas, suspeito que o autor da tal piada visual é uma delas, precisa de conformidade e linearidade, precisa de alguém que a diga o que fazer e quando fazer, ou simplesmente, está ali para cumprir uma obrigação social, ou, está olhando para o futuro, para seu tão sonhado bom emprego. Alguns, simplesmente estão ali, e não sabem muito bem o que estão fazendo e não pretendem descobrir, como todos estão fazendo faculdade isso deve ser a coisa certa a se fazer. Outras que estão nas escolas ou universidades possuem talentos e habilidade de outra ordem, e que não têm lugar ali, algumas vezes habilidades práticas que combinam pouco com a abstração que é requerida nas escolas e na academia. Ou então, como suspeito ser o meu caso, são pessoas criativas, para quem a conformidade é um grande empecilho.
Jung ao escrever sobre as possibilidades de educação descreveu algumas das formas de educar, uma delas diz respeito exatamente ao que estamos discutindo aqui, ela a chamou de “educação coletiva consciente”. Esse é um tipo de educação que se baseia em regras, princípios e métodos e estes três pontos são necessariamente de natureza coletiva, e se supõe que sejam válidas e aplicáveis ao menos a certo número de indivíduos. Mas o que se produz com esse tipo de educação? A resposta de Jung a essa indagação é “dessa educação não se pode esperar que se produza outra coisa ou mais do que aquilo está contido nas premissas, isto é, que os indivíduos sejam formados de acordo com regras, princípios e métodos gerais”. O que esse tipo de educação busca criar é a uniformidade, apenas outra maneira de dizer conformidade. O que acontece é que, variando de pessoa a pessoa em termos de grau, a índole individual do educando cede à natureza coletiva da educação. A uniformidade resultante será correspondente ao método que for empregado, ou seja, as regras, princípios e métodos. Esse tipo de educação não é, em si mesma ruim, pois em uma sociedade faz se necessário algum grau de ajustamento, de conformidade. Ou seja, isso leva a uma acomodação coletiva do educando, pois se espera, e não sem razão, que a educação conduza a formação de membros úteis da sociedade. Há, todavia um problema com esse princípio de educação, e que vem saltando aos olhos nos últimos tempos.
O problema desse tipo de educação, que é o que encontramos em nossas escolas e universidades, é que esse tipo de formação coletiva do caráter pode levar a graves danos a índole individual. É disso que sir Ken Robinson falou em suas palestras, sobre esse excesso no que concerne ao aspecto coletivo da educação. Não é ocioso recordar que esse tipo de educação coletiva é indispensável, para vivermos em sociedade e precisamos de normas coletivas e jamais poderemos renunciar ao princípio da educação coletiva. Mas o que muitos têm diagnosticado hodiernamente é um excesso. O aspecto individual tem sido sacrificado em demasia prol dos ideais coletivos, e em nossos tempos, a criatividade tornou-se uma qualidade cada vez mais desejada ou admirada, mas nossas escolas não permitem que ela floresça. Estamos diante de um grave desequilíbrio, não raro no sistema de educação individualidade é sinônimo de anarquia.
Pois bem, Jobs, Gates e Zuckerberg deixaram a faculdade, mas certamente não seus estudos, eles deixaram o ambiente que sufocava sua individualidade e abraçaram suas idiossincrasias e deram atenção a suas fantasias criativas. A faculdade não forma visionários, dificilmente dali brota algo de diferente e novo, a despeito de se exigir isso de uma tese de doutorado. Isso é algo que acredito ser bizarro quando penso a respeito. Estou escrevendo uma tese, logo é justo que eu pense a respeito. Ora, para se fazer uma tese se exige que ela seja inédita e inovadora, mas ao mesmo tempo, todo o tipo de uniformidade é exigida de maneira bastante autoritária, e dessas exigências que reforçam poderosamente os aspectos coletivos se espera que brote algo singular, estranho não? Deixando de lado essa digressão, o que o chiste que estou analisando procura transmitir é que a criatividade não é para você! Se você, caro leitor, resolver encarar como mentiras a conformidade e a linearidade, e resolver deixar a escola, ou não ir para a universidade, prepare-se para se tornar um mendigo. No fundo é uma piada muito triste.
Quando eu estava no meu último ano de escola, minha turma reunia os mais bem dotados academicamente da escola, e nessa época tive o privilégio de conhecer algumas das pessoas mais brilhantes que alguém poderia desejar conhecer, como meu dileto amigo Alexsandro Queiroz e Silva, vulgo Freud, um gênio da informática, não tenho dúvidas, e que era academicamente brilhante. Nunca fez qualquer pós-graduação e hoje vive e trabalha na Suíça, ou meu dileto amigo Fernando Barreto de Morais, vulgo Ferby, alguém que aos 16 anos já lia Rimbaud e francês e já conhecia Piaget. Mas não é deles que quero falar aqui, mas de um rapaz dessa época chamado Paulo Marciso, creio ser esse seu nome. Pois bem, ele era considerado por todos um rematado idiota. Nossa turma era muito harmoniosa e ele fazia parte da patota, e como em minha terra natal o humor é uma qualidade das mais enaltecidas, quando alguém o chamava de burro isso era feito com bom humor e ele nunca se importou, ele também nos chamava de nomes. O fato é, que ele realmente era incompetente academicamente, mas outra coisa saltava aos olhos. A despeito de toda a pressão coletiva, de mais de seiscentos alunos no último ano, creio que ele foi o único que não prestou vestibular. Ele nunca quis, dizia que quando terminasse os estudos iria se dedicar ao comércio, e dizia isso sem rancor ou ressentimento, ele não gostava de estudar e sabia que isso não era pra ele. Bem, eu sempre fui muito mais inteligente que o Paulo Marciso, mas ele sempre soube que ele era e que ele queria, e ninguém o dissuadiu de ser ele mesmo. Eu levei mais do que o dobro do tempo, talvez o triplo para poder fazer uma escolha individual, que um sujeito burro fez sem problemas.
Os três heróis de nossa piada, que não viraram mendigos, estiveram diante do mesmo dilema do meu antigo colega, e tiveram força de caráter similar. A faculdade não lhes tocava a alma, não favorecia os seus talentos e nem lhes inflamava a paixão e eles a deixaram, graças a Deus. Todos nós, em algum momento, ou mesmo em vários momentos, ficamos diante dessa mesma questão: sermos nós mesmos ou sermos o que se espera de nós? Viraremos mendigos se formos nós mesmos? A pergunta pode parecer jocosa, mas não há nada mais sério do que isso. Muito tempo se passou desde minhas escolhas desastradas na época da escola, mas ainda me vejo encarando esse enigma, bom, há algo em mim que sabe bem as respostas, mas saber a resposta e agir com convicção e coragem são coisas bem diferentes, pois quando somos nós mesmos há um preço a se pagar por isso, esse preço fica claro no discurso testamento de Jobs, quando ele se jogou em direção ao desconhecido não havia garantias, ele podia ter se tornado um mendigo, nessa época ele era um de nós. Talvez seja apenas a coragem e decisão que separe esses três e mais tantos outros do homem médio, além do talento é claro, mas apenas o talento sem a coragem não produz nada. Esse dilema é um dilema moral fundamental, e precisamos refletir seriamente sobre ele, principalmente aqueles que são educadores.
Precisamos lembrar do que disse Jung certa vez, que o homem médio desconfia e suspeita de tudo aquilo que sua inteligência não pode atingir, essa piada é uma prova dessa desconfiança. Como eles fizeram isso? Pois o homem médio certamente se tornaria um mendigo. O novo é sempre algo problemático, mesmo quando é algo de bom, há um medo terrível do novo, e nossa piada também traz um eco distante desse medo, e em parte, esse medo também impele o homem médio a desconfiar do talento. Uma tentativa de nivelar a massa do povo, se for bem sucedida, leva a catástrofe, pois, segundo Junge se o que se destaca é nivelado perde-se todos os pontos de orientação e surge o desejo de ser simplesmente conduzido por alguém. Eu, de minha parte, depois de tantos anos em busca de mim mesmo, prefiro o risco de ser um mendigo...

6 comentários:

  1. Cara, tenho que te parabenizar por esse texto. Geralmente, eu não comento em blogs, mas esse aqui mereceu. Essa 'piada' já me fez ponderar sobre os mesmos assuntos que foi discutido (se vale a pena arriscar a sua individualidade por questão de conforto, tanto monetário, quanto social). Você me fez ver o assunto sob novas perspectivas. Continue com o bom trabalho e conte com a minha leitura. Abraço.

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  2. Obrigado Davi, fico feliz que as minhas ponderações sobre o tema tenham te tocado a ponto de você deixar de lado o hábito de não comentar. Continuarei escrevendo e agradeço pelo incentivo e as palavras gentis.

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  3. Beleza, cara? Não, não tinha visto ainda. Vou dar uma lida. Abraço.

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  4. muito legal,por que vc mostra a realidade da individualidade que todos nos sempre pensamos,e temos medos de botar pra fora nossos sentimentos,por que temos medo de nao ser indolatrados..entao agimos como robôs,e seguindo uma cartilha de profissoes.....tirando a nossa propria realidade..e o noso proprio sucesso;;;;;;;;;;parabens;;;pelo texto;;;;;

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  5. Muito bem escrito. Gostei bastante da ideias do Eco citadas. É legal ver as ideias do Nietzsche sobre educação também, sobre a "demolição" das instituições...Ou, nós estamos fazendo uma grande besteira se reunindo aqui nessa farsa chamada universidade.

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    1. Obrigado, ainda tento digerir e refletir sobre as ideias de Nietzsche sobre educação...

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