quinta-feira, 14 de junho de 2012

Mais uma vez a banalidade do mal

Hannah Arendt, filósofa judia, ao se deparar com os carrascos nazistas no julgamento de Nurenberg foi tomada de um grande espanto, pois toda aquela crueldade fora praticada não por monstros ou pessoas mentalmente desequilibradas, mas por pequenos burgueses de aparência pacata e algumas vezes quase bovina. Foram esses, que poderiam ser seus vizinhos, ou colegas pacatos de trabalho que, ao receber as ordens para perpetrar o maior horror do século XX, o holocausto de seis milhões de judeus, o fizeram sem titubear, estavam apenas seguindo ordens. Pode-se pensar que esse é um fenômeno restrito ao passado, ou quem sabe, quiçá restrito aos alemães, mas isso não passa de falácia. Em nossa história recente, pacatas donas de casa foram às ruas apoiar nossa sangrenta ditadura militar, e Jung certa feita afirmou que o fenômeno do nazismo poderia ter surgido em qualquer parte da Europa. Hodiernamente, o que me preocupa e me leva a refletir não são os acontecimentos de nossa história recente, mas sim o que se passa nos dias de hoje, quando pacatos bancários defendem por via das redes socais ideias de extrema direita e facistóides.

Ao escrever essas linhas, pretendo traçar duas linhas de argumentação, que se entrelaçam: uma histórica – com a qual inicio – e uma psicológica, que vai ao coração do problema. Recentemente pude ver em imagens no Facebook, o novo ágora, mensagens de solidariedade aos PMs paulistas que executaram a sangue frio um suspeito, ou mensagens mais genéricas que diziam coisas como “bandido bom é bandido morto, enterrado em pé para não ocupar muito espaço, operação senta o dedo, essa eu apoio” o texto vem acompanhado de imagens das mais chocantes e sangrentas. Esse tipo de mensagem carrega mesmo que tacitamente – e isso é um problema ainda maior – a ideia de que “bandido” não é um lugar, mas um tipo, no sentido caracteriológico, como se existisse um “bandido nato” incapaz de ser outra coisa que não bandido. O que remete as ideias de Lombroso no final do século XIX, e por mais que essas mensagens de facebook não transmitam uma ideia de raça, certamente passam pela noção de que se nasce bandido.

Há igualmente uma incompreensão do que significa os direitos inalienáveis que são o esteio da democracia ocidental, logo o ataque a eles significa uma espécie de fascismo disfarçado ou apenas parcialmente consciente. Nosso regime político atual se caracteriza pela ideia iluminista de igualdade: todos nascemos iguais. É o oposto da ideia que norteava o antigo regime, o absolutismo monárquico europeu, de que nascemos desiguais. O nascimento, como nobre ou plebeu, decidia o seu destino: uns destinados a comandar e outros a servir. Alguns acumulando direitos e privilégios e os demais acumulando apenas obrigações. A “era das revoluções” como a chamou Hobsbawn mudou radicalmente essa concepção de mundo. O absolutismo começou a ruir com a adoção na Inglaterra do habeas corpus, ou seja, mesmo reis e nobres não poderiam prender alguém sem motivos legalmente válidos. Em seguida, na mesma Inglaterra, a monarquia constitucional colocou até mesmo o rei sob a tutela da lei. Na perspectiva do liberalismo burguês de viés iluminista todos nascemos com direito a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Ao negar o direito de alguns, que seriam qualitativamente diferentes dos demais, ou simplesmente ocupariam uma posição abjeta, o “bandido”, estamos retrocedendo ao pensamento do antigo regime, a lógica da desigualdade natural. O fascismo depende do totalitarismo, da desigualdade, assim como a democracia da igualdade, e da isonomia.

Existe algo curioso acerca dos direitos que esses criptofacistas parecem desconhecer, ou julgam por bem omitir: ou eles são para todos, ou não são para ninguém. Afinal, quem decide quem é bandido? Nos regimes totalitários quem decide isso é o estado, e não a sensibilidade da classe média que se arvora de extrema direita. Se defendemos uma polícia assassina, que faz às vezes de juiz júri e executor, estamos condenando a nós mesmos a sermos “bandidos”, pois a única distinção possível entre “bandido” e “cidadão” na democracia é o sistema judiciário pois somos todos inocentes até que se prove o contrário. Quem garante que numa madrugada o pacato bancário que vibra com a polícia assassina não será parado por uma blitz e, ao ter esquecido os documentos ou se negado a dar propina, não será barbarizado ou executado sumariamente como “bandido”? Ninguém garante, pois a única garantia que temos é o estado de direito. Ao enquadrar alguém como bandido, e ao jogar toda a culpa sobre os ombros dessa pessoa por sua condição, ou sobre seu nascimento ou genética, faz-se tabula rasa de duas coisas: as condições sociais e ao fato de que todos nós estamos sujeitos ao mal. Mesmo o pacato bancário, que gosta de apoiar a polícia assassina, ou que se julga acima do bem e do mal ao ponto de julgar quem é ou não bandido, pode, dependendo da temperatura dos afetos, matar, agredir, ou quem sabe algo até pior.

Mas qual é a psicologia do pacato bancário? Que na realidade, se não tivermos cuidado é também a nossa psicologia e, mesmo com todos os cuidados, num nível profundo, é também a nossa. É preciso que nos lembremos sempre, como disse Jung, que o dom da reflexão crítica e da razão não constitui uma propriedade incondicional do homem e, mesmo onde ele existe, ele se mostra muitas vezes instável e oscilante. O mesmo Jung, em ensaio intitulado “Presente e Futuro” afirmou: “Se o Estado de direito sucumbe, por exemplo, a um acesso de fraqueza, a massa pode esmagar a compreensão e reflexão ainda presentes em indivíduos isolados, levando fatalmente a uma tirania autoritária e doutrinária.”. Como as manifestações do facebook parecem atestar, essa é uma possibilidade que está muito viva. É difícil para um intelectual como eu admitir, mas se Jung acrescentou algo a nossa cosmovisão, foi a percepção do fato inelutável de que a argumentação racional só é possível até o ponto onde as emoções não tenham atingido um certo ponto crítico, pois depois disso a razão sucumbe e se torna ineficaz, restando em seu lugar slogans (bandido bom é bandido morto) e desejos quiméricos que levam progressivamente a uma epidemia psíquica.
A psicologia do pacato bancário – veja bem não digo aqui que se trata de uma personalidade doentia, é algo bem pior ele é perfeitamente normal – se sustenta em quimeras, preconceitos afetivos e ressentimentos fanáticos que fazem apelo à irracionalidade coletiva, usualmente, em pessoas normais ou em tempos de paz, esse dado coletivo de irracionalidade repousa sob o manto da razão. Mas sabemos que a paz é apenas um desiderato, um estado raramente alcançado.  Talvez a psicologia do pacato bancário não seja essa que eu descrevi, mas como o inconsciente é um dado irracional inalienável de natureza existencial, ele está sujeito, sem o saber, ao contágio psíquico de espíritos desse tipo, que existiram sempre em todas as épocas, apenas esperando o momento certo para deflagrar um incêndio que nos consume a todos assim que suas chamas se elevam furiosas aos céus.

Essas infecções psíquicas, cujos sinais de seus modestos inícios podemos ver nessas nefastas publicações no facebook, só acontecem e se propagam em virtude do conhecimento muito limitado que o pacato bancário – sendo ele normal – possui de si mesmo. O que acontece ao pacato bancário (todos nós em algum nível ou em algum momento nos comportamos como pacato bancário) é que ele (nós) confundimos “autoconheciemento” com o conhecimento da personalidade consciente. Infelizmente o eu conhece apenas os seus próprios conteúdos desconhecendo os conteúdos do inconsciente. Medimos nosso pretenso autoconhecimento por aquilo que o meio social sabe sobre nós e não a partir do fato psíquico real. Cito Jung textualmente, pois nesse ponto, ele toca no preconceito fundamental do pacato bancário.

O que comumente chamamos de "autoconhecimento" é, portanto, um conhecimento muito restrito na maior parte das vezes, dependente de fatores sociais - daquilo que acontece na psique humana. Por isso, ele muitas vezes tropeça no preconceito de que tal fato não acontece "conosco", "com a nossa família", ou em nosso meio mais ou menos imediato. Por outro lado, a pessoa se defronta com pretensões ilusórias sobre suposta presença de qualidades que apenas servem para encobrir os verdadeiros fatos.

O principal preconceito do pacato bancário é justamente esse, ao ler pelos jornais ou assistir aos cruentos programas de notícias policiais sobre assassinos e estupradores, traficantes e outros bandidos perigosos, de que tudo isso não acontece com ele ou seu meio imediato, ele não está sujeito a fazer nada daquilo que ele assiste com indisfarçável prazer na tela da TV, e que lhe permite viver sua ilusão por mais um dia, e reforça sua crença em suas pretensas qualidades. No passado, entre os antigos judeus, havia um ritual em que um bode periodicamente se tornava o receptáculo de todos os pecados da tribo e era lançado para morrer no deserto de Azazel de fome e sede. Não temos mais esse ritual, mas esse funcionamento típico não desapareceu de nossa alma, infelizmente nos dias de hoje, tão modernos, queremos exorcizar e matar nossos pecados em nossos semelhantes ah! Desculpem, não são nossos semelhantes, são bandidos! Esse é um dos preconceitos afetivos que sustentam o discurso e a ação do pacato bancário. Ao nutrir esses preconceitos e quimeras, nós (o pacato bancário) ficamos sujeitos a infecções psíquicas, pois só podemos evitá-las quando sabemos o que nos está atacando, como, onde e quando isso se dá. Ao permanecermos na inconsciência, enxergando nossos semelhantes como seres abjetos absolutamente diferentes de nós, nos condenamos a arder nas chamas do incêndio coletivo que aquelas personalidades que vivem sob a influência de fatores inconscientes doentios e perversos esperam para iniciar.

Nunca é fácil olhar para nós mesmos, mesmo as escrituras expõem esse fato com clareza Mateus 7.5 “Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.” O pacato bancário se comporta como o proverbial hipócrita, pois vê sua escuridão projetada de maneira distorcida nos bandidos, tornando-se presa fácil da contaminação psíquica que acompanha o discurso totalitarista e fascista. É fácil apontar o dedo para o outro, mas uma vez mais lembro que todos nós somos o pacato bancário, e todos temos a responsabilidade de nos mantermos, o maior tempo possível, racionais, e para tanto, convém conhecer o que há de irracional em nós, em nós e não em nosso semelhante. Do contrário veremos o passado se repetir de maneira funesta, pode até ser que dessa vez não seja eu e outros judeus e descendentes de judeus a queimar em holocausto, mas mesmo assim, essa perspectiva deve ser combatida por aquele pequeno percentual da população capaz de enxergar esse estado de coisas, seja lá quem os pacatos bancários resolvam queimar dessa vez, em seu mal banal e cotidiano.

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