terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Psicologia Analítica e Psicologia Ambiental

Escrevi esse pequeno ensaio para o Doutorado em Psicologia, todavia abandonei essa linha de investigação, compartilho o texto caso alguém deseje realizar alguma reflexão ou diálogo entre essas duas disciplinas, essa possibilidade de diálogo está apenas esboçada nesse texto, mas pode servir de inspiração ou ao menos como curiosidade aos interessados em um ou ambos os temas.
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Diálogos possíveis entre a psicologia ambiental e a psicologia analítica



plus ça change plus c'est la même chose

O intuito desse ensaio é realizar uma análise crítica dos pressupostos da psicologia ambiental apresentados no artigo “Olhando o passado e o futuro: revendo pressupostos sobre as inter-relações pessoa-ambiente” de autoria de Leanne G. Rivlin. O referido artigo procura analisar alguns dos pressupostos que faziam parte do livro An Introduction to environmental psychology publicado em 1974, de autoria de William Ittelson, apresentando a visão dos autores desse livro, bem como novas perspectivas e enfoques a partir da experiência da autora. O período de lançamento da já referida obra que serve de inspiração ao artigo de Leanne G. Rivlin é justamente a época em que surgiram os primeiros estudos sobre a área do conhecimento que foi chamada de: ambiente-e-comportamento, pessoa-ambiente, psicologia ambiental, termos que tentavam circunscrever essa nova área de interesse. Convém lembrar que, há época, poucas publicações precederam o livro de William Ittelson.
Além de realizar uma análise crítica, o intuito desses escritos é também apontar as possibilidades de diálogo e contribuição da psicologia analítica, criada pó Carl Gustav Jung, para o futuro desenvolvimento da psicologia ambiental. A psicologia analítica, ou Junguiana como a chama alguns, não é tão recente quanto à psicologia ambiental, tendo surgido no primeiro quartel do século vinte, todavia ainda permanece válida a opinião de Jung de que ainda estamos apenas engatinhando no conhecimento da alma, que permanece ainda um vasto campo desconhecido, sendo, portanto necessária toda a humildade ao se aventurar em seus caminhos e descaminhos. Ademais, a hipótese de um inconsciente psíquico bem como a teoria arquetípica de Jung, coloca por terra boa parte das pretensões vitorianas e positivistas de um saber racional e completo.
Jung levou muito a sério a tese Freudiana de que não somos senhores em nossa própria casa. Nossa vida é regida em larga medida por fatores inconscientes e irracionais, ao menos uma metade do mundo, não pode ser alcançada ou totalmente iluminada pela razão, e são essas as bases arcaicas sobre as quais a luz de nossa consciência repousa. O inconsciente não pode ser esgotado e sempre existirá um não sabido, uma lacuna, não oposta ao conhecimento consciente, mas complementar, pois não pode haver luz sem trevas, e, para que haja energia devem existir dois pólos. Devido a essa visão, o inconsciente não pode ser considerado mero quarto de despejos da consciência, o lugar do esquecido ou reprimido, mas fonte da fantasia criativa, de tudo aquilo que há de belo e sublime, bem como de tudo o que gostaríamos de negar em nós, mas que está dentro das possibilidades humanas, o terrível e o horror que não raro irrompe individual ou coletivamente. Convém salientar que a psicologia analítica jamais foi convertida por seu criador em metafísica ou filosofia, teve sempre um apelo prático e sua tecitura epistêmica se fez de maneira empírica. Certa feita, numa entrevista, Jung comparou sua psicologia a um mapa que tenha sido feito por alguém que chegou a uma praia ou ilha distante e desconhecida e a muito custo a explorou, caso alguém ao explorar o mesmo terreno guiado por esse mapa ache um rio onde não está apontado no mapa, ele deve ser prontamente modificado.
A autora inicia situando a psicologia ambiental, explicando o que é a psicologia ambiental através de um procedimento chamado arco hermenêutico, ela explica a psicologia ambiental ao demonstrar suas origens. Mesmo essa explicação se remete ao livro de 1974, do qual é co-autora, e se refere ao primeiro capítulo. As primeiras pesquisas nessa área surgiram no pós-guerra, em virtude do aumento do interesse por temas ambientais, e, mais especificamente, em decorrência de estudos realizados em alas psiquiátricas de hospitais nos anos de 1960.
Os pontos fundamentais do primeiro capítulo daquele livro são apontados pela autora como sendo a natureza transacional das relações pessoas-ambiente, em uma perspectiva dinâmica e sem determinismos, os métodos de campo utilizados pelos pesquisadores, sendo as pessoas observadas e estudadas como componentes do seu meio, bem como a natureza multidisciplinar do estudo. Ao concluir essa seção do seu artigo, ela cita o ditado francês que usei como epígrafe “quanto mais às coisas mudam, mais permanecem as mesmas”, adentrando agora justamente na parte que interessa a esse estudo: os pressupostos.
Um pressuposto pode significar algo (fato, idéia ou circunstância) antecedente necessário de outra (direito), bem como algo que se supõe como hipótese e sustenta e orienta uma investigação subseqüente. Também são idéias expressas de maneira implícita, tidas de antemão como corretas e necessárias as idéias que estão sendo expressas explicitamente. Literalmente (em sentido denotativo) pode ser compreendido, simplesmente, como uma conjectura, suposição. Nesse sentido, a preocupação em discutir os pressupostos e explicitá-los é um empreendimento de cunho epistemológico. Nesse ponto, antes mesmo de adentrar na discussão dos pressupostos levada a cabo pela autora, cabe uma primeira possibilidade de diálogo entre os dois campos que pretendo cotejar.
Para Jung, a psicologia deve ter uma atenção redobrada a epistemologia, pois não é possível na esfera do psiquismo existir uma matematização exata – o que não significa que não possa existir algum tipo de quantificação, do contrário seria impossível uma perspectiva energética para os fenômenos anímicos – nesse sentido o discurso epistemológico é basilar, pois a única possibilidade de rigor científico reside na delimitação clara e concisa dos conceitos. As teses de Jung na área da epistemologia possuem outros desdobramentos como seus conceitos de: realidade psíquica, esse em anima, e ética epistemológica.
A autora trata de oito pressupostos, e a esses acrescenta mais três novos pressupostos que julga serem necessários a atualidade da pesquisa em psicologia ambiental e aos novos desafios surgidos entre a aparição do livro de Ittelson e a publicação de seu artigo de revisão, são eles: O ambiente é vivenciado como um campo unitário, a pessoa tem qualidades ambientais tanto quanto características individuais, não há ambiente que não esteja envolvido por um sistema social e inseparavelmente relacionado a ele, O grau de influência do ambiente físico no comportamento varia de acordo com o comportamento em questão, o ambiente freqüentemente opera abaixo do nível de consciência, O ambiente ‘observado’ não é necessariamente o ambiente “real”, O ambiente é organizado como um conjunto de imagens mentais, O ambiente tem valor simbólico; além dos três novos pressupostos: O aumento da quantidade de tecnologia na vida das pessoas criou novas dimensões ambientais que têm impacto nas atividades diárias, Os aspectos éticos da pesquisa e da prática ambientais também exigem uma reflexão contínua, precisamos ser lembrados da natureza holística da experiência ambiental. Examinarei aqui todos eles, com atenção especial para os pressupostos 5, 6, 7 e 8, pois aqui reside a maior possibilidade de contribuição da psicologia analítica para a psicologia ambiental.
O primeiro pressuposto “O ambiente é vivenciado como um campo unitário”, segundo a autora, a experiência do ambiente é holística e é experiência fenomenológica proporciona um sentido de campo, segundo ela “Significa que as experiências de se movimentar através dos ambientes da vida diária são integradas em uma série de lugares e eventos, alguns dos quais mais estimulantes do que outros”. Paradoxalmente, essa experiência holísticas é também mutável, além de poder lembrada separadamente em suas várias dimensões.
Me parece que esse pressuposto entra em conflito, em certa medida, com o pressuposto cinco, que será tratado mais adiante, mesmo assim faz-se necessária uma reflexão psicológica sobre essa conjectura. Em termos psicológicos, ao falarmos de percepção, existem pelo menos dois sentidos possíveis, podemos estar nos referindo à percepção global, que envolve tanto a consciência quanto o inconsciente, nesse sentido há as percepções sublimares, aquilo que foi esquecido ou reprimido etc. A rigor todo o processo de percepção envolve as duas esferas consciente e inconsciente, que são inseparáveis, todavia a percepção consciente, dificilmente pode ser compreendida como um fenômeno holístico. Para Jung, a consciência é focal, e funciona pelo circuito energético de direção/seleção/exclusão. Tomemos um exemplo, alguém que esteja em uma sala de aula atento a explicação do professor, a direção de sua atenção está focado na fala e nos gestos do mestre, pois ele selecionou aquilo para estar em seu foco de atenção consciente e excluiu tudo o mais. Talvez exista o barulho do ar condicionado, ou alguém que esteja conversando ou tamborilando na cadeira, mas essas outras percepções logo caem abaixo do nível energético da consciência e tornam-se subliminares. Imagine agora que um colega cutuque o nosso aluno e comece a entabular uma conversa com ele, o que o levará a ter de prestar atenção ao que seu colega lhe está falando, selecionando sua conversa como foco de sua atenção, dirigindo a ele sua atenção e excluindo todo o resto (incluindo o conteúdo da aula exposto pelo professor) de seu campo de percepção. Nesse sentido, do funcionamento da consciência e da forma como ela percebe o que se passa a sua volta, essa vivência dificilmente é holística.
Há, todavia um porém, pois psicologicamente, pois essa vivência do ambiente pode, em certo sentido ser compreendida como holística. Todo fenômeno de percepção envolve de maneira quase simultânea um fenômeno de apercepção que convoca o sistema psíquico como um todo. Para Jung, em certa medida, o fenômeno perceptivo puro, é um fenômeno físico, sendo o evento psíquico envolvido o processo aperceptivo. Em uma de suas obras mais antigas, Tipos Psicológicos, Jung sugere que a personalidade funciona através de um sistema de 4 funções psíquicas duas racionais (sentimento e pensamento), e duas irracionais (sensação e intuição). Basicamente existem dois tipos de atitude, que só se tornam caracteriológicas quando há uma acentuada unilateralidade, mas normalmente uma delas se torna mais habitual: extroversão e introversão. O extrovertido se orienta pelo objeto e o introvertido pelo sujeito. O pensamento me diz o que uma coisa é e com que ela se relaciona, o sentimento é um sistema psíquico de valoração e me diz, de maneira simplificada, se gosto ou não de algo. A sensação por sua vez, me diz se algo existe, e a intuição está relacionada a uma percepção de fenômenos endopsiquicos bem como as relações de possibilidades de algo e seus desdobramentos futuros. Sempre que há o desenvolvimento de uma atitude psicológica, isso significa a especialização de uma função em detrimento da outra. Alguém que tenha como função principal o pensamento, e a desenvolva conscientemente como sua maneira de se adaptar ao mundo interior e exterior, terá sua função sentimento como inferior, relegada ao inconsciente, sendo ela bem menos desenvolvida, primitiva e infantil, e relativamente autônoma (às vezes não tão relativamente), o mesmo acontece entre sensação e intuição. Normalmente existe uma função auxiliar que colabora com o processo de adaptação. Por sua vez, um tipo pensamento pode ser introvertido ou extrovertido, normalmente um tipo pensamento introvertido terá como função inferior um sentimento extrovertido.
Nesse sentido, ao caminhar por um parque, por exemplo, minha sensação pode se dar conta de que há uma garota ao meu lado, pois a vejo, assim que a percebo, minha função pensamento imediatamente utiliza aminha memória e me diz em que categorias ela se enquadra: é um ser humano, uma garota, jovem ou velha etc, e minha função sentimento me diz se gosto dela ou não, se sua beleza ou aparência me agrada ou causa repulsa, e minha intuição aponta coisas não diretamente perceptíveis aos sentidos ou diretamente ligadas ao momento presente. Nesse sentido, simplificadamente, toda a interação com o ambiente (esse termo, ao que me parece é muito limitado em seu sentido corriqueiro usado em psicologia ambiental e pode ser grandemente enriquecido pela perspectiva da psicologia analítica) demanda o psiquismo como um todo. Parte desse processo é autônomo e ligado a bases inconscientes e independente da volição consciente, ou seja, não se trata de um arbítrio, ele simplesmente acontece a consciência.
O segundo pressuposto “a pessoa tem qualidades ambientais tanto quanto características individuais” segundo a autora “Cada pessoa presente em um local contribui para o que está acontecendo ali, mesmo sendo silenciosa, passiva. Essa pessoa ocupa um espaço, é um componente da densidade, ‘se faz presente’, podendo atuar naquilo que está acontecendo e influenciar outros que estejam no local”. Ela também chama a atenção para o que Ittelson chama de “feedback cíclico”. O que significa, grosso modo, que cada um dos presentes em determinado ambiente o afeta ativa ou passivamente, além de receber influências desse meio, num mecanismo recíproco (daí o aspecto cíclico). Cum grano salis, pode-se aproximar esse fenômeno apontado por Leanne G. Rivlin a chamada psicologia de massas, bem como ao fenômeno de identidade arcaica/projeção, o que farei com mais propriedade adiante. Convém salientar, todavia, que esse mecanismo cíclico, principalmente o aspecto passivo da participação de um indivíduo em determinado ambiente, se torna meramente uma constatação sem a hipótese de influências mútuas inconscientes, logo sem a proposição mais firme e metodologicamente coerente de um inconsciente psíquico ela não passa do nível elementar da descrição. Pode-se adiantar que uma das qualidades do psiquismo que permite esse tipo de interação cíclica com o ambiente é a capacidade da psique de se dissociar, daí a possibilidade de adaptação aos mais diversos ambientes.
O terceiro dos pressupostos “não há ambiente que não esteja envolvido por um sistema social e inseparavelmente relacionado”, de acordo com a autora, esse continua sendo um pressuposto válido e sem a necessidade de muitos reparos, a não ser no sentindo de ampliar o entendimento de “social” para abarcar ainda outros significados. Isso reforça o apelo à multidisciplinaridade e, seria mais acurado afirmar na atualidade que “o ambiente físico está envolvido pelos sistemas social, econômico, político e cultural nos quais se encontra e é inseparavelmente relacionado a eles” o que, confesso, me parece uma formulação tautológica e que ao invés de precisar o termo, o torna ainda mais vago. A possibilidade de diálogo entre as disciplinas que cotejo nesse texto existe aqui também, mas abordarei essas possibilidades à frente, quando tratar do aspecto simbólico do ambiente.
O quarto pressuposto “O grau de influência do ambiente físico no comportamento varia de acordo com o comportamento em questão”, esse pressuposto se baseava no desejo de evitar determinismos, algo louvável. De acordo com a autora essas influências podem ser tanto sutis quanto poderosas e dependem da soma de diversos fatores (tipo, forma e qualidade do ambiente, aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos). A autora procura atualizar esse pressuposto da seguinte maneira: “(...) a interrelação pessoa-ambiente tem impacto tanto imediato quanto de longo-prazo, sendo dificultada pelas fontes de valores, normas e hábitos em contexto”. Parece-me, todavia, que a autora pende a balança da formulação que deve necessariamente ser antinômica para um dos lados e, sua formulação parece esquecer aquilo que afirmara antes “não há ambiente que não esteja envolvido por um sistema social e inseparavelmente relacionado”, tal “envolvimento” vai muito além de um simples interrelacionamento, os espaços que são criados ou habitados pelo homem necessariamente são criados ou transformados tendo por base uma cultura. A autonomia objetiva do espaço possui limites claros, pois interessa a psicologia menos os objetos em si (em última instância, inapreensíveis), mas a forma de apetecer. Os espaços, nesse sentido estão imersos na cultura e são, em larga medida, por ela criados e, mesmo os espaços naturais ou nas culturas primitivas em que não existia possibilidade técnica de intervenção, isso se revela verdadeiro na medida em que o espaço se achava simbolizado. Mircea Elíade, descreve em seu livro Sagrado e Profano, como a construção das cidades antigas obedecia a uma ordem simbólica, a praça retangular em seu centro era também o centro do mundo e sua organização espelhava, normalmente em forma de mandala, o que se acreditava ser a ordem cósmica. Campbell descreve, em seu livro dedicado a mitologia primitiva, como uma tribo de aborígenes australianos se guiava em suas peregrinações, utilizando um poste de madeira que representava o axis mundi, quando precisavam se mudar, deixavam ele cair ritualmente e para onde apontasse eles seguiam. Segundo a descrição fornecida por Campbell, sucedeu de um dia tal poste quebrar e toda a tribo se deixou permanecer estática onde estavam até morrer de fome. Não é ocioso adiantar nesse ponto que, a noção de Jung de realidade é crucial para se compreender as relações do psiquismo com o ambiente. Não existe uma realidade imediata, toda realidade é mediada pela alma, ou seja, a rigor a única realidade imediata é a realidade da alma, tudo o mais nos chega através dela. Existindo uma inter-relação entre aquilo que percebemos e o modo como percebemos, além disso, a realidade dos fenômenos propriamente anímicos, como sonhos, visões, percepções internas etc, é elevada a dignidade idêntica a da realidade dita “externa”, os conceitos de dentro e fora se confundem ou se entrelaçam aqui. Nesse sentido, para Jung, dito de maneira simples “é real aquilo que atua”. Por exemplo, se alguém acredita que uma caverna é mal assombrada e isso atua com tal força que ele não se aproxima de modo algum desse lugar, psicologicamente isso é real.
Um exemplo utilizado por ele em seu livro O Eu e o Inconsciente, torna essa explicação mais fácil, ele narra o sonho de um paciente. A noiva desse paciente estava correndo sobre um lago congelado enquanto era observada por ele, ela se aproxima de uma fenda no gelo e se joga nas águas escuras e geladas morrendo afogada. Ao analisar esse sonho Jung afirma tratar-se um fato real, que se manifesta sob a aparência de um suicídio. Não significa que seja idêntico a um suicídio, mas ambos os fatos – um suicídio e o sonho em questão – são realidade. Isso se deve a percepção de que a única realidade imediata é a realidade da alma. Mesmo se presenciássemos um suicídio real, não teríamos jamais acesso a sua realidade objetiva e ontológica, apenas a imagem dele em nossa alma. Logo, para a psicologia analítica, um sonho como esse se trata de um fato “empírico”, pois mesmo os ditos fatos “externos” só são apreendidos psicologicamente. Temos, no entanto, desde o fim da era gótica, a tendência a valorizar de maneira unilateral a matéria em detrimento do espírito, recaindo naquilo que Jung jocosamente denomina de “metafísica da matéria”, pois aquilo que julgamos conhecer de maneira clara e inequívoca é igualmente, em última instância inapreensível. O que temos é uma inclinação sentimental a preferir a “matéria”. No medievo era o oposto, há um exemplo interessante que me foi mostrado por meu amigo Filipe Jesuíno no Maleus Maleficarum, nessa época o espírito era a realidade suprema e, ao se referir as bruxas, e a ação dos demônios os padres alegavam que, mesmo quando se constatava que o malefício causado a alguém se tratava de um veneno (uma substância material) ou algo do tipo, isso meramente significava que esse foi o veículo escolhido pelo diabo para perpetrar sua vilania e maldade.
O quinto pressuposto é um dos que mais me interessa, diz ele “o ambiente freqüentemente opera abaixo do nível de consciência”.  A implicação que é tirada desse pressuposto é que o indivíduo se torna consciente do ambiente quando algo muda nele o que leva a uma necessidade de adaptação. Para a autora, o termo “abaixo do nível da consciência” significa de maneira simplista, simplesmente os elementos do ambiente que estão fora do meu campo de consciência e que, temporariamente, desconheço. No caso do ambiente isso se verifica apenas quando algo se alterou no referido ambiente e quando se é levado a um novo e, portanto, desconhecido ambiente.
Certamente esse pressuposto não passa de uma banalidade e uma simplificação rasteira do conceito de inconsciente. Na realidade, sequer é mencionado o termo propriamente dito, simplesmente algo vago como “abaixo do nível da consciência”, o que lembra a antiga formulação de “subconsciente”, que remonta a psicologia francesa com Pierre Janet.  Colocado dessa maneira, esse pressuposto é metodologicamente estéril e absolutamente desnecessário e redundante. Como expus anteriormente, toda a possibilidade de explicação e compreensão da dinâmica psíquica das relações entre homem e ambiente repousa, para a psicologia analítica, na hipótese de um inconsciente psíquico.
Para Jung o conceito de inconsciente (Unbewusste) é exclusivamente psicológico e não filosófico, trata-se de um conceito limite-psicológico que abrange todos os conteúdos e/ou processos psíquicos que não estão relacionados ao complexo do eu de modo perceptível. A consciência surge de bases inconscientes, e este é anterior, simultâneo e posterior a consciência. O inconsciente – na maioria das vezes – se comporta como complementar ou compensatório a consciência. A hipótese de um inconsciente surge de uma demanda prática e da observação dos fenômenos psíquicos, em especial aqueles ditos patológicos, pois nesses casos isso se torna mais perceptível. Para Jung, a psique é um sistema energético, parcialmente fechado e auto-regulativo, e o quantum total de energia desse sistema não é idêntico a energia psíquica disponível a consciência, existindo igualmente um psiquismo inconsciente, objetivo e autônomo. Von Franz possui uma definição excelente de inconsciente e que vem bem a calhar nessa discussão.
O inconsciente é tudo aquilo que sabemos ser psiquicamente real, mas que não é consciente. Trata-se de um conceito limítrofe, e negativo. Usamos esse conceito negativo para evitar um preconceito. Alguns o chamam de supraconsciente, outros de subconsciente, outros ainda falam de esfera divina ou base existencial. Nomes há aos milhares. Preferimos o termo inconsciente justamente porque não diz nada. Diz apenas que não é consciente, o que permanece um mistério. Não sabemos o que é. Sabemos apenas que há fenômenos psíquicos que se manifestam através de sonhos, gestos involuntários, lapsos da fala, alucinações ou fantasias que não são conscientes. (FRANZ & BOA, 1997, p.37)
Nessa perspectiva, o inconsciente é um conceito central e absolutamente necessário, não apenas teoricamente, mas igualmente por razões empíricas e práticas. Toda e qualquer explicação ou compreensão oriunda da psicologia analítica faz uso do inconsciente, não à toa, Jung o denominou de “o problema fundamental da psicologia contemporânea”.
O sexto pressuposto, “O ambiente ‘observado’ não é necessariamente o ambiente ‘real’”, o interessante desse pressuposto é que a autora não discerne a radicalidade dessa formulação, em sua concepção, isso apenas significa que existem diferentes percepções individuais. Um mesmo espaço pode ser percebido de maneira diversa por pessoas diferentes em virtude de fatores como: background étnico, crença religiosa, etc, no sentido de uma distorção individual do mundo objetivo. Isso inclui, igualmente, que uma mesma pessoa pode ter diferentes percepções de um mesmo lugar dependendo do seu humor. Isso está longe de ser falso, mas psicologicamente é superficial. A rigor, o ambiente real, nunênico é inapreensível em si mesmo e o acesso direto que temos é a imagem que formamos dele em nossa alma.
Essas diferenças de percepção são abordadas por Jung de uma outra maneira, certamente o nível de educação e as crenças interferem na imagem mental que formamos do ambiente, mas há outros fatores. Ao pensar na possibilidade de tipos psicológicos, Jung traz uma complexidade inaudita a essa questão. Pensemos apenas nos dois movimentos básicos da libido, introversão e extroversão. O primeiro é orientado pelo sujeito e o segundo pelo objeto, logo para o extrovertido, ou para aquele que estiver num momento de extroversão, sua atenção, interesse e libido estarão voltados para tudo aquilo que lhe for “exterior”, suas emoções e processos subjetivos se encontrarão sempre projetados e depositados nos objetos externos que terão para ele um valor subjetivo de realidade muito forte. Ocorrendo o contrário com o introvertido, que dispensará pouco interesse ao mundo exterior e muito mais real para ele serão seus processos “internos”, pensamentos, sentimentos etc.
A autora, ao falar da possibilidade de um “grau de distorção”, chega mesmo a argumentar que com o treino necessário um observador pode atingir um maior grau de clareza e suplantar sua subjetividade e alçar um grau crescente de objetividade em suas observações o que ajudaria numa observação sistemática de pesquisa. Tal conceito flerta perigosamente com o positivismo.
A percepção do ambiente é inevitavelmente nublada pelo fenômeno de identidade arcaica (participação mística)/projeção. É preciso que se diga que em psicanálise existe esse mesmo conceito, mas ele só se aplica à paranóia. No caso da psicologia analítica ele é um fenômeno geral e não necessariamente associado a alguma patologia. O fenômeno da projeção está associado à qualidade da nossa psique de se dissociar, pois aparentemente nossa psique é formada por vários complexos separados que se unem para formar uma individualidade. Mesmo ao falar do complexo do eu, Jung utilizava os termos “altamente compósito e variado”, num momento lembramos com clareza de um nome (ele possui a qualidade de ser consciente e estar associado ao complexo do eu) no momento seguinte esse nome desaparece, não somos mais capazes de nos recordarmos (não está mais associado ao complexo do eu), além disso, ao se referir ao inconsciente, Jung reiteradas vezes fala que “todo inconsciente é projetado”, mas estamos nos adiantando.
Na realidade, ao contrário do que versa a psicanálise sobre a projeção, nós pessoas normais projetamos o tempo inteiro, o que significa que, além das informações sensoriais que nos são transmitidas pelos sentidos, existem sempre influencias psicossomáticas internas que influenciam a maneira como experimentamos o mundo. Todavia, o fenômeno da projeção possui um escopo bem mais restrito, ele está relacionado ao fenômeno mais geral daquilo que Jung denominou de identidade arcaica. Só é considerada uma projeção, em termos junguianos, quando existe um sério distúrbio de adaptação. Esse distúrbio pode ser percebido quando a pessoa responsável pela projeção, ou aqueles a sua volta, unanimemente rejeitam o conteúdo projetado.
Já o fenômeno mais geral, da identidade arcaica, significa uma igualdade psicológica e é sempre um fenômeno inconsciente, e que é o fundamento da participation mystique, resíduo da primitiva indiferenciação psíquica entre sujeito e objeto. Logo do estado inconsciente primordial. Esse estado também caracteriza a primeira infância e o inconsciente do adulto civilizado. Este, na medida em que se não tiver tornado um conteúdo da consciência permanece preso a um estado de identidade com o objeto.

Isso significa que temos uma quase ilimitada mistura de nossa subjetividade na imagem que formamos do mundo. O termo arcaico é utilizado por Jung, pois essa é a condição original do homem, ou seja, um estado em que vemos e sentimos todos os processos psíquicos como algo exterior a nós mesmos. Bons e maus pensamentos são espíritos, afetos são deuses, estar apaixonado significa estar enfeitiçado e por aí vai. Projeções são socialmente perigosas, e terrivelmente perturbadoras, mas possuem um sentido e uma função. Existem certos processos inconscientes dos quais só podemos nos tornar conscientes através das projeções. Boa parte do trabalho analítico consiste em auto-conhecimento, pois não há transformação da personalidade sem auto-conhecimento, e isso significa, em termos psicológicos, a assimilação moral de certos conteúdos do inconsciente.
Tal percepção é bem menos simplista e mais complexa do que a aludida pela autora.
O penúltimo dos pressupostos “O ambiente é organizado como um conjunto de imagens mentais” significa para a autora “Enquanto percepções podem ser consideradas como um conjunto de imagens, a cognição como um todo sofre o impacto das expectativas e dos objetivos pessoais, os quais, por sua vez, levam a pontos de vista seletivos que afetam o papel dessa mesma pessoa no ambiente. Tais cognições permitem que as pessoas transitem de modo ordenado em seus mundos”. Esse pressuposto, que deveria apontar para um acento realmente psicológico, uma vez mais resvala na banalidade e num aspecto meramente descritivo.
O último ponto “O ambiente tem valor simbólico”, está, para a autora, relacionado à noção de “identidade do lugar”, que seria um reconhecimento da contribuição do ambiente para a formação da identidade da pessoa, e nesse processo as lembranças simbólicas assumem um papel significativo. O que a autora compreende como simbólico são as memórias das pessoas que vivenciaram determinados lugares e nas emoções associadas a esses lugares e que se tornam componentes da conexão das pessoas com essas localidades.
O conceito de simbólico é menos vago, mais preciso e útil em Jung. Um sinal é distinto de um símbolo, pois ele simplesmente representa por analogia algo definido, como ONU é um “Sinal” convencional para Organização das Nações Unidas, ou as placas de transito. Em resumo, toda concepção que explica o símbolo por analogia ou abreviação é semiótica. O símbolo, por outro lado pressupõe sempre que a expressão escolhida seja a melhor designação ou fórmula possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é conhecida ou postulada. Jung distingue pelo menos dois tipos de símbolos: símbolos vivos, que enquanto forem vivos são a melhor expressão possível de algo, ou seja, são prenhes de significado. Um símbolo “morto”, possui apenas valor e interesse histórico quando seu sentido já foi extraído dele e formulado ou expresso de maneira melhor. Enquanto o símbolo for vivo, ele é a forma insuperável de expressar aquilo que é pressentido. Um símbolo pode ser objetivo, quando sua natureza simbólica se impõe por ele mesmo, de maneira objetiva. Assim como pode existir algo que funcione como símbolo em virtude da consciência que o contempla, da atitude simbólica do indivíduo. O símbolo tem o poder de operacionalizar a participação do inconsciente na consciência, o que possui um efeito gerador de vida.
Para Jung, mais do que simplesmente estar associado às memórias e a identidade, o símbolo pressupõe a participação de fatores inconscientes na consciência, como exposto anteriormente.
Os três novos pressupostos elencados no texto: O aumento da quantidade de tecnologia na vida das pessoas criou novas dimensões ambientais que têm impacto nas atividades diárias, Os aspectos éticos da pesquisa e da prática ambientais também exigem uma reflexão contínua, precisamos ser lembrados da natureza holística da experiência ambiental. Não me parecem necessitar de uma reflexão mais pormenorizada, o último já foi explorado e se tornaria repetitivo falar novamente das características holísticas da experiência ambiental, e os dois primeiros, igualmente, não me parecem trazer nada de realmente novo ao que já foi exposto com a discussão dos oito pressupostos originais.
Como se pode perceber há um vasto campo de possibilidades de contribuição e diálogo entre as duas áreas e que, por hora, está apenas dando seus primeiros passos. A psicologia ambiental pode se beneficiar em muito das teses da psicologia analítica.

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