sábado, 27 de agosto de 2011

O Poder Transformador da Indiferença

O título pode parecer contraditório ou controverso, visto a indiferença dificilmente poder ser considerada uma virtude, todavia, esse nem sempre é o caso, e nossa sociedade deveria aprender a praticar a indiferença. Bom, na realidade o meu intuito é narrar uma história exemplar, uma parábola se preferirem, para ilustrar o meu ponto de vista.

Tudo aconteceu há mais ou menos dez anos. Voltava eu de uma sessão de Zazen (meditação sentada japonesa) e estava dentro de um ônibus, tarde da noite, numa viagem que levava, mesmo com o adiantado da hora e o trânsito mais tranqüilo, pelo menos uma hora. Esse ônibus passava em frente a uma praça histórica em minha cidade, construída nos tempos da “belle époque” quando se fazia todo o possível para macaquear a atmosfera e o requinte parisiense. Mesmo continuando a ser uma praça muito bela e agradável, há décadas ela deixara de ser freqüentada pela elite burguesa, e tornara-se um local de baixo meretrício.

Pois bem, o coletivo parou exatamente diante da praça, repleta de pobres e tristes putas, eu estava, como normalmente ficava nos ônibus, sentado alheio, pensativo e distraído. Entre os passageiros que embarcaram naquela noite quente, estava uma velha meretriz, de rosto cansado e aspecto maltratado. Até então, o interior do transporte estava relativamente vazio, mas muitas pessoas entraram nessa parada e um dos últimos lugares vagos ficava ao meu lado, rapazinho limpinho e bem arrumado, com a carinha típica da classe média com pretensões burguesas. Antes de sentar-se ao meu lado, ela vociferou alguns rápidos impropérios contra mim, na lógica de que a melhor defesa é o ataque, afirmando que se sentaria ali. Eu encarei com desinteresse seu rosto enrugado e murmurei um “tá bom”, imediatamente retornando aos pensamentos que deixara em suspenso por um instante para ouvir o que ela tinha a dizer.

Pelos próximos vinte ou trinta minutos eu a ignorei, mas não como quem faz força para ignorar algo, simplesmente a ignorei com a maior naturalidade e sem o menor sinal de esforço. Ela não me causava qualquer repulsa ou atração particular, e, naquele momento, era como qualquer outro passageiro que tivesse sentado ao meu lado naquela jornada, uma anônima, nada mais. Perdido em meus pensamentos, fitando a janela e vendo a passagem noturna passando surreal a minha frente, chegou o momento em que a velha levantou-se para deixar a condução. Ela me fitou meio constrangida, sem o sinal da aspereza e agressividade de antes, sorriu se desculpou e me agradeceu, virou-se e nunca mais a vi. Ela deixou para sempre a minha vida, mas habitou até hoje a minha memória.

Seu agradecimento se deveu a minha indiferença, ela não me causou incômodo, ou asco, ou qualquer sentimento desse tipo, não lhe lancei qualquer olhar de superioridade, nem mudei minha atitude anterior, assumindo uma postura defensiva, devido a sua presença. A tratei como a qualquer um que se sentava rotineiramente ao meu lado num ônibus. Apenas mais um estranho que vem e vai. Talvez esse tenha sido um dos maiores gestos de gentileza que aquela prostituta idosa já teve, ser tratada com a mesma indiferença que qualquer passageiro de ônibus merece, sem qualquer atenção indevida ou julgamento devido a sua profissão, ainda mais velha do que ela.

Hoje, dez anos depois desse acontecido, vivemos uma época em que muitos estão profundamente incomodados, pois sua moral sexual se vê abalada. Não que eles mesmos, os incomodados, estejam mudando os seus hábitos, são os outros, que teimam em ser eles mesmos. Homossexuais que teimam e ser e agir como tal, mulheres que insistem em amar outras mulheres, ou em simplesmente não serem submissas. É o fim da família, e com o fim da família, logo se seguirá o fim do mundo! Eu, de minha parte, sinceramente, não ligo a mínima para os gays, é algo que me é profundamente indiferente, eles que sejam felizes como quiserem e como puderem, todos deveriam ter assegurado o direito à “busca da felicidade”. A conduta sexual de alguém, ou melhor dizendo, o gênero que alguém prefere amar, seja o seu próprio ou não, não me diz nada sobre o caráter dessa pessoa. Assim como a cor do cabelo ou dos olhos de alguém não me diz se essa pessoa é legal ou uma sacana.

Os “Bolsonaros” da vida, bem que poderiam se incomodar e se chocar, com aquilo que merece nosso incômodo: os milhares que padecem de fome, que vivem nas ruas, ou que morrem em filas de hospitais. Isso me causa um terrível incômodo e me choca. Alguns, em claro exagero e excesso, se fazem até porta-vozes do incômodo de Deus com relação ao amor que, em sua crença, é perverso e desviante. Bom, se eu realmente pudesse ter algum insight nos pensamentos e idéias do meu criador, certamente me preocuparia com outros de seus pensamentos, o que ele, o altíssimo, pensa sobre os gays me seria profundamente indiferente.

Espero viver para ver o dia em que, um casal homossexual se beijando num restaurante seja tão corriqueiro e banal quanto alguém pedindo um cafezinho, e que isso seja tratado, um mero beijo, com a mais fria e profunda indiferença, sem nenhum incômodo, asco ou repulsa, ou sem qualquer atrativo especial, simplesmente comum.

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