domingo, 8 de maio de 2011

A Morte de Osama Bin Laden

Não se deve subestimar os efeitos da morte de Osama Bin Laden. Uma das principais implicações da morte do terrorista saudita certamente é a garantia da reeleição do presidente Barack Obama, algo que alguns analistas políticos começavam a duvidar devido às quedas sucessivas em sua popularidade. Todavia, Obama e Bin Laden são ícones de duas vias culturais distintas que inevitavelmente se chocam em nosso mundo globalizado. Como historiador é meu dever de ofício, ao ponderar sobre esses dois mundos que encarnam nessas duas figuras trazer a perspectiva da duração. Barack e Osama, ironicamente ambos com nomes islâmicos, são símbolos de desenvolvimentos históricos e psicológicos muito diversos, de maneiras de perceber a realidade e a história com sensibilidades quase opostas. Para aquilatarmos de maneira precisa os efeitos do assassínio do odiado terrorista, faz-se necessário compreender a diferença que ele personifica.

Bin Laden é o Islã, o oriente, a hipérbole é necessária. Obama, o negro, filho de pai africano mulçumano e mãe americana branca, liberal e cristão é o ocidente com todas as suas contradições e possibilidades. É mais fácil para nós, ocidentais, perceber o islã por contraste, naquilo em que somos diferentes e, a partir daí, compreender o que nos separa. O islã, o mundo árabe, o levante, ou como se queira chamar, não passou pelo mesmo processo de reflexão filosófica que se estendeu por todo o medievo e culminou com o iluminismo, como o ocidente – em que pese que a despeito desses fatos terem se passado na Europa, pequena península da Ásia, nós no Brasil falamos uma língua européia, temos um sistema legal europeu, uma forma de governo e política que tem suas raízes profundas nessa península – a Europa teve um grande movimento filosófico que se irradiou da Grécia a partir do século V e que caminhou até a patrística. Filósofos como Platão e Sócrates eram críticos ácidos da sua religiosidade nativa, eles não pregavam o ateísmo, mas uma forma mais elevada de religião, não á toa Platão foi considerado pelos pensadores medievais um “cristão avant la letre”. A patrística, para organizar o dogma cristão de maneira coerente e racional utilizou de maneira soberba o método filosófico das escolas platônicas e aristotélicas, e o medievo europeu só perdeu contato com essas bases culturais devido a uma má interpretação de algumas passagens do genial Santo Agostinho.

Até o século XIII foi o islã que tornou-se herdeiro da tradição grega, eram seus filósofos e pensadores que conheciam o grego clássico e que dispunham de educação filosófica para compreender os meandros do discurso de Aristóteles. Avicena e Averrois, leram e compreenderam o sábio estagirita, mas nunca o tornaram mulçumano, assim que eles compreenderam que para Aristóteles alma e corpo formavam uma união indivisível, que esse, entre outros pressupostos, eram contrários a doutrina do Corão, eles o abandonaram em favor do livro sagrado. Quando o vagalhão mulçumano finalmente deixou a Europa após séculos de conquistas e lutas incessantes, eles deixaram para trás sua herança filosófica. A partir do século treze se inicia a escolástica, e não demorará para que surja em cena o colosso intelectual de Tomás de Aquino, retomando as provas aristotélicas da existência de deus e abandonando a prova ontológica (como a denominou Kant) de Santo Anselmo (jamais consegui explicar com sucesso aos meus alunos a tese de Anselmo, por isso nem vou tentar aqui). Aquino consegue o que Averrois não conseguiu, ele recria Aristóteles alterando certos detalhes para que sua filosofia se adéqüe a revelação cristã – fundamentalmente platônica – retomando a máxima agostiniana de que é preciso “primeiro compreender para depois crer” (Intellige ut Credas, Crede ut Intelligas), o que moldou o pensamento cristão/católico da escolástica durante todo o medievo.

O pensamento teológico católico caminhou, através da hermenêutica, cada vez mais para uma interpretação menos literal das escrituras e mais e mais compreendendo como metáfora os símbolos da bíblia, lentamente abandonando o sentido denotativo dado a essas imagens grandiosas. O islã jamais teve um William of Ockam, que criticou a metafísica em favor da teologia e criou um método lógico inovador e que, inadvertidamente, foi precursor do iluminismo. O islã jamais teve um Maquiavel, grande inaugurador da modernidade, para quem sequer importavam as grandes questões da metafísica tradicional sobre a existência de deus, imortalidade da alma, finitude ou não do universo ou o debate interminável entre nominalismo e realismo e a elegante síntese de Abelardo. Não, para Maquiavel importava como conseguir e manter o poder, como governar, a política, sem especulações de cunho metafísico ou moral, era o seu tema.

O islã jamais teve um Kant, que demoliu o edifício metafísico (e apesar de ser crsitão) contribuiu para que o pensamento filosófico ocidental caminhasse cada vez mais a passos largos para uma crescente secularização. Mesmo a reforma protestante, com seu retorno a compreensão literal denotativa das escrituras não foi capaz de alterar esse processo em curso. O iluminismo e as revoluções burguesas que deram fim ao Antigo Regime europeu, nos legaram todo o fundamento de nosso direito e sistemas políticos, nos legaram a noção de que igualdade e  liberdade são valores humanos inerentes a cada um de nós ao nascer. As palavras de Voltaire ecoam até hoje “posso não concordar com uma única palavra do que dizes, mas lutarei até a morte pelo teu direito de dizê-las”. O levante continuou preso a tradição religiosa, sua lei é a Sharia, suas regras são aquelas reveladas pelo profeta.

Nosso modo de vida possui vantagens e desvantagens. Marx encarava a religião como o “ópio do povo”, e durante um bom tempo a filosofia e a sociologia se inclinaram a essa interpretação, que se não é completamente equivocada, ao menos é exagerada e unilateral. Jung aponta que o “mal estar” de que falava Freud, é derivado da perda cultural dos símbolos vivos da religião. Campbell aponta que o mito possui quatro funções: a mística, a cosmológica, a sociológica e a psicológica. O mito nos serve para apresentar o sentido de assombro e mistério diante da existência; proporcionar uma imagem do próprio universo, que é a da ordem matemática do cosmo; vincular o indivíduo à sociedade, àquele cosmos e àquele mistério. A função sociológica do mito se expressa com clareza nas tábuas das leis de Moisés, a lei humana, a sociedade é ordenada por Deus da mesma maneira que foi ordenado os ciclos cósmicos, e assim como não podemos simplesmente alterar a ordem natural das estações, não podemos alterar a verdade revelada da lei de Deus. Nossa sociedade, por mais de um milênio, caminhou para o abandono dessa noção, nossa moral e leis são humanas e mutáveis, nossa visão do cosmo não depende mais das imagens de jardim de infância elaboradas a três mil anos de um jardim, uma serpente e um casal humano primordial, nossa visão do cosmos foi tomada do mito e assumida pela ciência. Para tanto sofreram Galileu e Giordano Bruno, ganhamos muito, mas também muito perdemos, sem esses símbolos para nos guiar e moldar nossas vidas estamos, no dizer de Campbell “em queda livre em direção ao futuro”.

O islã ainda tem vivos e com poder avassalador esse símbolos, todos os aspectos de sua vida são guiados pelas palavras grandiloqüentes do profeta Maomé. Certamente eles não padecem das mesmas neuroses e dúvidas existenciais de que padecemos, ou dos conflitos morais. Mas ao mesmo tempo, não possuem nossa tolerância, a mulher é duramente oprimida, homossexuais são mortos, qualquer outra religião é proibida, o anti-semitismo é pregado abertamente, e a lei é Draconiana. Para nós seus sistemas de governo absolutistas são arcaicos e obsoletos e sua falta de liberdade desconcertante. A eleição de Barack Obama é um marco fundamental do mundo ocidental, um negro, de nome árabe, de pai imigrante chega ao posto máximo da maior potência ocidental. Não esperam jamais, ou ao menos pelos próximo cem anos um judeu na presidência do Irã.

A morte do principal representante do fundamentalismo islâmico está longe de ser um vitória definitiva, mas era uma vingança clamada pelo povo americano que ansiava pelo sangue do algoz de 11 de Setembro. Todavia, o assassínio de Bin Laden representa uma terrível afronta aos valores ocidentais, e precisa ser pensado sob essa ótica. Até onde estamos dispostos a chegar na “luta contra o terror?”. O ato de Obama pode, e deve, ser visto como um ato criminoso e imperialista, nossa história, nossos valores e nossa filosofia nos permitem pensar assim. Não que Bin Laden não merecesse, mas tal afronta aos nossos ideais duramente conquistados de liberdade e igualdade deve ser vista como um 11 de Setembro simbólico, a morte de Bin Laden é um atentado contra tudo o que o ocidente possui de melhor. Quando essa guerra vai terminar? Não sei, mas sei que tudo termina um dia, inelutavelmente, não sei nem mesmo se viverei para ver o desfecho desse choque de mundos, mas espero que, de alguma maneira, os lados desiguais dessa balança se equilibrem.

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