sexta-feira, 4 de março de 2011

Esboço de uma consideração sobre os limites entre o Freudismo e a Filosofia

Esse foi um texto escrito há pouco mais de um ano, talvez um ano e meio, para uma das disciplinas do meu mestrado em psicologia, esta em particular ministrada pela professora Laéria Fontenele. Apesar da temática hoje em dia não me apetecer mais, esse é um escrito de que gosto, por isso resolvi publicá-lo aqui.


Chegamos ao termo dessa travessia, podemos fazer soar o objeto freudiano sob o choque do martelo filosófico (sem esmagar o objeto nem quebrar o martelo)?

A frase acima é de Paul-Laurant Assoun, do primeiro capítulo de seu livro sobre a metapsicologia Freudiana[1]. A questão é no mínimo intrigante, torna-se ainda mais perturbadora se levarmos em conta à letra de Assoun na já citada obra, onde ele passeia com segurança por intrincados conceitos da filosofia (em especial do Kantismo) e procura estabelecer um diálogo entre esses dois saberes, Mostrando o desafio que representa a obra inaugurada por Freud (a psicanálise) ao entendimento filosófico, ao mesmo tempo em que mostra a relação inextrincável de alguns aspectos da obra com certos debates cruciais para a filosofia, e que representam justamente uma das vigas epistemológicas de sustentação do edifício do Freudismo.
Talvez esse sucinto texto que me aventuro a escrever tenha pouco interesse psicanalítico propriamente, e se encaminhe mais um entendimento puramente epistêmico e, em certa medida, filosófico. Todavia, tendo sempre em vista, e como crivo princeps a obra de Freud e a advertência sagaz de Assoun, sobre esses dois saberes (psicanálise e filosofia) que “o próprio Freud nos desencoraja de confundi-los”[2]. Quiçá esse cuidado permita que ele possa ter algum interesse a psicanálise e, quem sabe, até a filosofia. Não raro as discussões fronteiriças desagradam a ambos os lados. Mas a epistemologia possui esse condão de perambular por muitos campos sendo paradoxalmente nativa e estrangeira a todos.
Mas, sem maiores digressões, de maneira um tanto quanto contraditória, Assoun afirma, sobre o que ele chama de “fenomenismo” do autor da interpretação dos sonhos, que ele esculpe uma certa “racionalidade”, que escapa de um idealismo, ao mesmo tempo em que (e aí está o nosso paradoxo) se funda na clínica, nos achados clínicos e na fala e na verdade de um sujeito particular. O que nos remete, a uma tensão, sempre presente, entre o geral e o particular. Pois toda a racionalidade filosófica refere-se ao geral, ao universal. Estando o particular, a singularidade em segundo plano. Tendo sido sempre a ciência, uma ciência do geral.
E a arte se exprime quando, de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo universal dos (casos) semelhantes. Com efeito, ter a noção de que de que Cálias, atingido de tal doença, tal remédio deu alívio, e a Sócrates também, e, da mesma maneira, a outros tomados singularmente, é da experiência; mas julgar que tenha aliviado a todos os semelhantes, determinados segundo uma única espécie, atingidos de tal doença, como os fleumáticos, os biliosos ou os incomodados por febre ardente, isso é da arte. (In Aristóteles, Metafísica I, V.II, São Paulo, 1984).
O fio de navalha sobre o qual caminha Freud talvez não fique claro apenas pelas palavras veneráveis do sábio estagirita, pois os caminhos e descaminhos que essa dialética entre o geral e o particular tiveram na história da filosofia no ocidente talvez não sejam imediatamente claros a todos. Para não despender muito tempo nesse debate (que se prolonga desde os veneráveis dias dos sábios da acrópole ateniense até hoje) vale atentar para as palavras de Pena.
Acerca do conhecimento intelectual ou racional, o que o caracteriza é o fato de que ele somente atinge o geral ou o abstrato, mas não o individual e o concreto. Na verdade, o conhecimento intelectual está sempre voltado para a busca de possibilidades. Seu mundo é o mundo do possível. Precisamente por essa razão é que todas as concepções filosóficas de tipo existencial revelam-se antiintelectualistas: elas só se interessam pelo individual. (2000, p.25)
Pena prossegue ainda mais descrevendo como se dá esse processo, em que o pensamento, através da abstração se afasta do particular.
O modo próprio através do qual se processa o conhecimento inteligível é a abstração. Por ela, precisamente, excluem-se os elementos que respondem pela participação do objeto e se liberam os elementos essenciais ou universais. (Ibidem)
A elucidação destes termos, utilizados por Assoun, faz saltar aos olhos a distância de Freud da discussão filosófica propriamente dita, e também a grandeza de sua obra, que, mutatis mutandis, parece equilibrar de alguma forma as medidas desiguais dessa balança entre o geral e o particular, ainda mais brilhantemente por que.
(...) Freud jamais separe, por um momento sequer, a pesquisa da “terapia”. Não há diferença entre pesquisar neurótico e “trata-lo”. Nada de fascinação, aqui, por uma clínica pura, que desampare o saber. (Assoun, 2000, p.24)
Sob o escrutínio atento da lente reveladora de uma reflexão epistemológica podemos perceber a complexidade da tecitura epistêmica de Freud, que mesmo não tendo, a rigor, refletido seriamente sobre isto (nesses termos, bem entendido) consegue equaciona-los de maneira interessante, mantendo-se entre esses dois pólos. Diferente de outros grandes nomes como Rogers, por exemplo, que absit invidia verbo se revela fascinado por essa “clínica pura”, sobre este ponto em particular, me alinho ao lado de Poincaré quando este afirma.
É que a filosofia antiintelectualista, recusando a análise e o discurso, condena-se, por isso mesmo a ser intransmissível: É uma filosofia essencialmente interna, ou ao menos o que se pode dela transmitir são apenas as negações; como então espantar-se com o fato de que, para um observador exterior,  ela tome a forma de ceticismo?
Aí está o ponto fraco dessa filosofia; se quer permanecer fiel a si mesma, esgota seu poder numa negação e num grito de entusiasmo. Cada autor pode repetir essa negação e esse grito, variando sua forma, mas sem nada acrescentar.
Além disso, não seria mais conseqüente calar-se? Ora essa, os senhores escreveram longos artigos; para isso não puderam deixar de usar palavras? Assim, não foram muito mais "discursivos" e, por conseguinte, não ficaram muito mais longe da vida e da verdade do que o animal que vive pura e simplesmente sem filosofar? Não seria esse animal o verdadeiro filósofo? (POINCARÉ, 1995, p.158)
Assoun qualifica a reflexão epistemológica de Freud, não sem razão, de “tão radical quanto singular”[3], Freud insere na ciência o inconsciente, o não sabido. Não à toa esse conceito ingressa na ciência apenas para romper com o conceito de ciência[4], pois o inconsciente se situa como uma instância última e insuperável de incognoscibilidade, que se opõe a noção mesma de ciência, indo à radicalidade etimológica dessa palavra (tão popular em nossos dias) encontra-se o termo latino scientia. Pois o termo ciência: conhecimento, saber, informação; do latim scientia ciente, que tem ciência[5]; scientia/ae é um substantivo da primeira declinação com significado de conhecimento, ciência, arte na língua filosófica o conhecimento (Cícero), a especulação (Cícero)[6]. Não e preciso grandes feitos de interpretação para se perceber a evidente antinomia entre os dois termos, ciência e inconsciente.
O Kantismo ocupa lugar central na discussão promovida por Assoun, talvez por que também Kant, há seu tempo, promoveu, como ele mesmo relata em seu Prolegômenos, uma “revolução copernicana”, também o filósofo de Koenigsberg impôs aos seus contemporâneos um severo limite ao saber, e mudou de posição o sujeito do conhecimento. Todavia, Kant certamente teria críticas severas a certos posicionamentos de Freud, e talvez não seja de todo ocioso tomar ciência dessas críticas. Assoun nos relata algo deverás curioso que se encontra na correspondência de Freud.
“Desde que estudo o inconsciente, tornei-me eu mesmo muito interessante.” Para além da frase espirituosa, existe aí a indicação de uma especificidade epistêmica do objeto de estudo da psicanálise: o “inconsciente” tem essa virtude única em seu gênero, enquanto “objeto de estudo”, de interessar o sujeito em si mesmo – o que contrasta, por sua radicalidade, com a categoria frouxa do “interessante”. (2000, p26)
A franqueza de Freud é de fato reveladora, ela expõe uma ferida aberta na própria tecitura epistêmica desse saber, que se a rigor, não pode ser chamado de psicologia, pelo menos tem com esta essa característica comum, que aos olhos de Kant, a invalidava ab ovo.
Na perspectiva Kantiana, o eu, sujeito de todo julgamento, é uma função de organização da experiência mas do qual não pode haver uma ciência, de vez que ele é a condição de toda ciência (Pena, 1991 p.36)
Problema esse que se configura como rochedo a bloquear o caminho, irremovível (visto não podermos subir em nossas próprias costas para vermos mais longe), mas que, de alguma forma precisa ser contornado, mas não esquecido ou escamoteado. O sentido do sujeito em Freud (segundo Assoun) é paradoxalmente muito próximo do de Kant e ao mesmo tempo, infinitamente distante.
Portanto, se o “sujeito” não é uma categoria, metapsicológica, ele organiza efetivamente a experiência do inconsciente, à maneira de um a priori induzido por essa experiência. Toca-se, aí, a versão do mesmo círculo elaborado pelo saber metapsicológico. A Spaltung – processo pelo qual o sujeito se cinde (Einriss) sob o efeito da representação da castração – obriga a pensar uma versão inédita que constitui um desafio essencial à racionalidade do sujeito elaborada pela tradição filosófica. (Assoun, 2000, p.34).
Em ambos (Kant e Freud) esse sujeito organiza a experiência e é condição de toda experiência, mas a similitude termina aí. Para Kant, e, cum grano salis, para a filosofia de uma maneira geral, não existe essa Spaltung nos sujeito do conhecimento, nem tão pouco ele sofre essa Einriss, ao contrário, esse sujeito é íntegro, completo, transparente a si mesmo e auto-determinado. A faculdade da razão, possibilita auto-determinação, esse poder de uma quase semelhança a Deus, βρις  de que se pode, com justiça, acusar a filosofia. E que tal acusação, vinda do campo psicanlítico, causa estranheza e, não sem razão, um certo temor. Talvez nesse momento eu esteja sendo por demais ousado, mas chego a pensar que, se levada a sério pela filosofia a crítica Freudiana teria conseqüências, talvez, ainda mais profundas que aquela formulada por Kant, todavia devo a fortiori considerar essa afirmação demasiada para o fôlego desse texto.
Mas outros temores à psicanálise (e a psicologia) causam aos filósofos, pois a atividade pensante, que é base de toda a Filosofia, é uma atividade psíquica, e como tal, pertence ao campo da psicologia. O próprio sujeito do conhecimento é objeto de estudo da psicologia[7]. O que faz com que a Filosofia (como já apontou Nietzsche) corra o risco de tornar-se um saber submetido à psicologia.
Assoun também aponta algo crucial, que talvez não seja facilmente notado. Ele faz uma diferenciação entre Metafísica e Metapsicologia, e, a meu ver, uma das mais fundamentais diferenças reside na impossibilidade da psicanálise (ou qualquer outro saber psicológico) estabelecer um cosmovisão (Weltanschauung), o que é justamente o papel da Metafísica. Nesse sentido, é vital que a psicanálise não degenere em ideologia, nem tão pouco, que participe da cosmovisão científica. Do contrário, o delicado e precário equilíbrio entre geral e particular a que aludi anteriormente se esfacelaria.
A psicanálise não cria nenhuma visão de mundo original nem nenhum estilo de vida nesse sentido (Assoun, 2000, p.28)
No momento em que a psicanálise reforça ou adere a alguma Weltanschauung, ou pior! Torna-se ela mesma uma cosmovisão, tudo está perdido. E certamente as conseqüências clínicas seriam graves, pois a possibilidade de abertura para o individual, para o singular, para a vida mesma, pois tudo o que vive, vive individualmente (já nos alertava Goethe) estaria perdida, e a psicanálise rebaixada a saber ortopédico, normalizante. Como muitas psicologias, lamentavelmente, hoje o são.
Além disso, se se aceita naquilo que Freud repete ad nausea, que a psicanálise é uma ciência (mesmo que não seja, ela é um saber que, ao mesmo tempo, rompe com a doxografia do vulgo, e não se constitui em saber filosófico) não pode jamais, pretender estabelecer alguma verdade metafísica. Talvez seja mais fácil compreender essa afirmação quando se entende o que se diz quando se fala ou escreve a palavra metafísica. Metafísica, em grego, significa além (μετά) da física (φυσικά), reza a tradição que se deve ao fato dos textos de Aristóteles (hoje chamados de metafísica), que tratavam do tema dos princípios das causas primeiras, estarem, na biblioteca de Alexandria, na prateleira acima dos textos que tratavam da físis (φίσις). Para os gregos a metafísica não tratava de algo além ou exterior a físis (φίσις), para eles vigia o que se chamou de “realismo metafísico”. Durante o medievo (período em que a obra de Aristóteles gozava de autoridade quase inquestionável) chamava-se de metafísica a ciência do ser perfeito, ou a ciência de Deus, e de ontologia uma série de outras questões pertinentes (a imortalidade da alma, finitude ou infinitude do cosmos, etc.), a partir de Kant, metafísica e ontologia se confundem, e as questões ontológicas passam a ser chamadas também de metafísicas. Com Kant, chamou-se de metafísico todo o saber que se pretendia transcendente, ou que, em outras palavras, dizia algo sobre a coisa em si (Das Ding Sich).
Percebe-se, que a psicanálise, se segue ad litteram a noção de inconsciente, como limite do saber, ou como não sabido, não pode avorar-se de dizer algo definitivo sobre a coisa sem qualquer mediação, ou melhor, como se toda mediação tivesse sido brevi manu removida, ou, para ser novamente (e talvez demasiadamente, até) ousado, como se fosse possível acesso direto ao inconsciente ou como se esse não existisse. Mesmo Kant considerava a metafísica indispensável, principalmente como saber regulativo, e, a despeito da psicanálise não poder falar desse lugar (a qual ela não pertence) também à jovem ciência não cabe depreciar a metafísica, e nesse ponto creio que excedo os limites estreitos desse texto e o deixo com um ponto final provisório.



[1] Assoun, Paul-Laurent; 1996, Rio de Janeiro
[2] Ibidem p.38.
[3] Assoun, 2000, p.26.
[4] Ibidem p.25.
[5] Cunha, Antônio Geraldo da, 1986, p.182.
[6] Garner, 2003, p.896.
[7] Jung, 1986, p.214.

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