domingo, 27 de fevereiro de 2011

Reflexões

Normalmente escrevo sobre temas como mitologia, ou filosofia e psicologia, de vez em quando sobre algum filme bacana que eu tenha visto, mas até o momento não escrevi nada sobre a minha vida ou meus próprios problemas. Creio que já comentei sobre minha professora de budismo tibetano e sua atitude diante das minhas respostas repletas de citações e clichês, sempre insistindo em que eu falasse do que se passa comigo, ou do que eu penso, e não do que Jung ou Campbell pensam sobre aquilo que ela estava perguntando. Isso me levou a perceber como é difícil para eu expor os meus sentimentos, ou mesmo externar meus dilemas e as minhas reflexões. Desde que levei esses pitos, tenho tentado alterar essa situação, mas não é nada fácil, não é simples como parece parar por um momento e olhar sem preconceitos para a própria vida. Para um tipo intelectual como eu isso normalmente acaba levando a todo tipo de sentimentalismo desprovido de qualquer valor. Todavia, é um exercício necessário.

Além disso, para as pessoas ligadas às letras, a escrita acaba por adquirir em certos momentos uma função catártica, escrever ajuda a aliviar certas tensões que talvez não se dissipassem de outras maneiras. Bem, ao menos comigo as coisas funcionam assim, mas não é só isso. A palavra escrita possui certas qualidades que a tornam muito especial, não à toa em tantas sociedades à escrita é sagrada ou mágica. Há certas coisas que adquirem seu real sentido quando escritas e não quando ditas. Tenho certa dificuldade para me expressar através da fala, para aqueles que me conhecem isso pode parecer uma lorota, pois normalmente sou bem eloqüente, mas como reparou a minha professora de budismo, quando é para dizer às coisas que realmente importam a minha extroversão claudica.

Vejam esse texto, por exemplo, dois parágrafos e ainda nem comecei a falar do que me aflige, apenas justificando a minha necessidade de escrever. É interessante notar que sempre fiz troça das pessoas que falavam de si mesmas em público, costumava até mesmo usar o termo pejorativo “strip-tease psíquico”, numa clara projeção sombria. Aquelas pessoas que me pareciam tão tolas estavam me mostrando justamente um dos meus calcanhares de Aquiles. Pois bem, o fato é que venho passando por dificuldades em minha vida, grande impasses e tremendo paradoxos, o que é perfeitamente normal, já dizia o Buda “viver é sofrer”. Mesmo assim, mesmo tentando encarar a vida de maneira afirmativa, tentando ver mesmo nesses aspectos terríveis a face daquilo que nos transcende, a consciência viva, cósmica e universal da qual somos todos manifestações, é difícil não sofrer terrívelmente com todos esses impasses e problemas.

Confesso que o sofrimento em si não é um incômodo tão grande, por algum motivo desde cedo desenvolvi uma personalidade bastante estóica. Creio que o que me incomoda é a tentativa de sempre tentar extrair algum sentido dessa bagunça tremenda que é a vida. Talvez porque a vida em si mesma seja desprovida de qualquer sentido, a não ser daquele que conseguimos imbuí-la. Meus dissabores atuais vêm principalmente de ter de lidar cada vez mais com muitas pessoas. Engraçado, antes o meu sofrimento advinha de me sentir isolado, veja você. Todavia, creio que o fato de se estar lidando cotidianamente com muitas pessoas não significa que não se esteja isolado. Estabelecer uma conexão humana genuína com outra pessoa é algo dificílimo. É possível estar cercado o tempo inteiro por um monte de pessoas e estar completamente só.

Também é difícil “seguir a própria bem aventurança”, para usar a expressão de Campbell, lá vem as minhas citações novamente, mas fazer o quê. No prefácio do seu símbolos da transformação, Jung relata sofrimento similar, ele estava seguindo sua voz interior, mas seus pares viam apenas “um maluco as carreiras”. Seguir essa voz interior é algo difícil, quando se tenta estabelecer sua própria bússola moral você se torna um sujeitinho inconveniente ou no mínimo estranho. Essa voz interior, esse daimonion, o leva a fazer o que é “certo” não o que é conveniente. O que leva as pessoas a verem você apenas como um sujeito bem inadequado socialmente. Afinal, todos possuem expectativas e planos para você, o tempo todo, mas a sua aventura é única e somente sua e precisa ser descoberta, do contrário se vive na “terra devastada”.

Vivi nesse lugar por um bom tempo, sei bem reconhecer suas fronteiras e sua paisagem tão peculiar. O local onde começa sua aventura, aquilo que o define como ser humano singular, é sempre a parte mais escura, assustadora e inóspita da floresta, é ali que aguarda o chamado a aventura. Ouvimos esse chamado muitas vezes, mas o mais fácil é recusar a partida, pois esse chamado a aventura leva a uma partida para somente depois de grandes perigos e sofrimentos se chegar a uma reconciliação com a sociedade e as pessoas que se “deixou para trás”, pois você retorna com o “tesouro” dessa jornada. O certo é que, seguir o meu daimonion tem me custado uma boa dose de grandes problemas, toda aventura possui uma caverna escura e um dragão a ser abatido. É difícil escapar “da tirania das vozes razoáveis”, expressão que vi numa revista do Thor. Essa frase foi dita por um senhor, um sujeito normal sem poderes. “os erros que você comete sempre pode tentar corrigi-los, os erros que você não comete, por que você não faz nada, não tenta ou não se arrisca, são esses que vão te assombrar quando ficar velho. O que realmente mata é o arrependimento”.

Para seguir o próprio coração é preciso enfrentar a “tirania das vozes razoáveis” ou corre-se o risco de viver uma vida que não é genuína, mas isso não é nada fácil, não mesmo. Nesse momento a minha vida lembra muito as simplegades, as duas imensas rochas em colisão que Ulysses teve que atravessar com o seu frágil barco, uma situação de uma adversidade aparentemente intransponível. Porém, o destino de simplesmente permanecer imóvel, de fazer ouvidos mocos ao meu próprio coração é pior do que o de ser esmagado.
Já “tagarelei” um monte, e quase nenhuma vírgula desse texto fala de maneira direta sobre os meus problemas, creio que esse fato seja um deles. Falar, “abrir o flanco” é difícil, mas sem isso, sem a confiança para num ato de fé se atirar ao abismo sem saber se é possível chegar ao outro lado, não se pode ter uma relação humana genuína. Nossos erros e fraquezas nos definem como seres humanos, a perfeição é algo monstruoso, inumano, nossa compaixão é despertada pelos defeitos e imperfeições. Se estamos o tempo inteiro ocultando isso, nos mantendo a distância, nos privamos do contato genuíno com outros seres humanos. O grande problema, a questão crucial, é saber dosar isso com o cuidado que devemos ter ao viver em sociedade. Infelizmente, ou felizmente, estamos cercados por pessoas que mereceriam um belo cruzado no queixo, mas novamente o dilema, mesmo aí está à presença do altíssimo.

Cá estou eu, de madrugada tentando sem sucesso falar do que me aflige, preso entre as rochas em choque do medo e desejo, os pares de opostos que engendram o mundo. Talvez eu devesse estar exultante ao invés de triste, a vida se apresenta a mim em toda a sua maravilha e horror, diante dessas rochas que ameaçam me esmagar, me resta encarar o mundo e a vida com paciência e compaixão, e esperar que minhas ações não façam grandes estragos por aí e que, no fim das contas, quando o véu da noite da minha vida se fechar sobre mim, tenha poucos arrependimentos a me assombrar.

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