quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Sobre a interpretação dos sonhos parte I

Hoje resolvi escrever sobre interpretação dos sonhos. Meu intuito, na realidade, é escrever sobre a maneira como Jung compreende a arte de interpretar sonhos, todavia resolvi começar pela perspectiva Freudiana. O motivo é simples, a maneira que Freud compreende a interpretação dos sonhos é bem mais simples do que a de Jung. Além disso, Jung a princípio comungava de algumas das idéias de Freud. Além do aspecto relativo, Freud é mais simples que Jung, a compreensão dos sonhos de Freud é simples, ponto. Não é difícil compreender as linhas gerais do pensamento Freudiano a esse respeito, e o meu intuito aqui é justamente falar sobre isso de maneira clara e direta.

Para Freud o sonho é uma psicose de curta duração e que pode até mesmo ter um efeito benéfico. Além disso, o sonho é sempre uma realização alucinatória de um desejo recalcado, eu repito sempre. E o sonho uma vez mais sempre é o guardião do sono, em outras palavras, você sonha para continuar dormindo. É preciso ter em mente também que o sonho sempre se refere a sexualidade recalcada e é sempre regressivo. O sonho vai apontar coisas do seu passado, especialmente da sua infância e é sempre de conotação sexual. A técnica Freudiana é sempre de análise e regressiva, não há espaço para progresso, como já ouvi de mais de um psicanalista “não há psicossíntese”, o trabalho sempre é de desconstrução.

O sonho representa uma maneira de retorno do recalcado, por isso ele passa por um processo que o torna diferente daquilo que ele deveria realmente expressar. É muito simples: o que percebemos do sonho é seu conteúdo manifesto, que passou pelo processo de elaboração onírica que o deforma e o torna diferente dos pensamentos oníricos latentes. A elaboração deforma os pensamentos oníricos latentes tornando-os irreconhecíveis no conteúdo manifesto. Esse processo se dá através dos mecanismos da condensação (Verdichtung) e deslocamento (Verschiebung), há uma censura, algo que age independentemente da volição consciente, como um órgão de verificação que atua em nós com o intuito de evitar o desprazer, tornando o sonho o guardião do sono.

Invariavelmente o sonho é a realização de um desejo de maneira alucinatória para se livrar de uma perturbação do sono. Além disso, o sonho provém do inconsciente e aquilo que percebemos dele é uma fachada para os “pensamentos oníricos latentes”. Estão em jogo três mecanismos psíquicos no sonho: censura, deslocamento e condensação. Pronto, basicamente é isso, o que torna a interpretação onírica freudiana um tanto monótona e maçante, sempre uma realização de desejo inconsciente e sempre o guardião do sono, e sempre e sempre de novo relativo à sexualidade e ao passado.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Defesa Pessoal

Estava matutando outro dia sobre as minhas experiências como artista marcial, seja como praticante ou professor, e resolvi colocá-las no papel, em particular o que concerne a possibilidade do uso efetivo em situações reais de combate do Kung Fu e da arte marcial de modo geral. A princípio, devo deixar claro que sigo a risca, e concordo plenamente com o pensamento que meu professor, Grão Mestre Kwok Wai, sempre professa sobre esse tema. Desde a invenção das armas de fogo o Kung Fu passou a ser praticado para saúde. No filme Mar de Fogo há uma fala interessante que me chamou a atenção “God did not made man the same, mister Colt did”, com o advento das armas de fogo, mesmo o maior perito em Kung Fu pode ser facilmente abatido a distância por um velhinho de noventa anos com uma pistola, desde que ele esteja de óculos. Mesmo assim, a possibilidade de uso efetivo em situações de vida ou morte traz ao treino seriedade e perspectiva e não deve ser negligenciado.
Ao meditar sobre a preparação para uma situação de risco real, sem qualquer controle e onde sua integridade física e a de terceiros está em jogo, cheguei a conclusão que podem existir basicamente quatro estágios de desenvolvimento em que o praticante se encontra para poder reagir ou não, a uma situação como a descrita. Creio que o primeiro estágio seja o de simplesmente saber executar de maneira correta as técnicas e as formas. Toda arte marcial possui um conjunto de técnicas, expressos de muitas maneiras: sejam os Katas ou Katys do Karate e Kung Fu, ou as técnicas de torção e projeção como no Aikido e Judô, entre tantas outras. Nesse primeiro nível, o estudante já consegue executá-las de maneira correta, num ambiente seguro e controlado e talvez já consiga até mesmo imaginar possíveis variações ou respostas adequadas às mesmas técnicas que pratica. O fato de conseguir executá-las com correção em parceiros de treino amigáveis na escola de artes marciais, no entanto, não significa que possa utilizá-las para salvar sua própria vida.
Um segundo estágio, ao meu ver, é quando o corpo do praticante está adaptado as técnicas. Muitas das técnicas possuem movimentos que parecem estranhos, ou não naturais, ou exigem força e flexibilidade, ou mãos seguras, dedos resistentes, ou simplesmente um certo grau de vigor atlético. No Kung Fu, bem como em certos estilos de Karate de Okinawa que derivam suas técnicas do Kung Fu de Fukien, existem abundantes exercícios para tornar o corpo mais rijo e resistente, as mãos mais duras e capazes de feitos aparentemente sobre-humanos. Ou, em outras artes, a própria prática, repetida a exaustão, molda o corpo do estudante que seja diligente o bastante. Certa vez, ao saber do meu interesse pela espada reta, um dos meus irmãos mais velhos de Kung Fu mais diletos, e com quem já aprendi muito, chamado Ruben, repetiu para mim um velho ditado chinês “para aprender o facão treina-se todo dia por cem dias, para se aprender a lança, treina-se todo dia por mil dias, para se aprender a espada deve-se treinar todos os dias por dez mil dias”.
Num terceiro estágio, além do treino técnico e do treino físico, atingi-se de algum modo, a compreensão de que existe um aspecto energético, que normalmente é representado pela capacidade de controle da respiração, chamada pelos hindus de prana, ki pelos japoneses, ou chi pelos chineses. Em todos esses sistemas de pensamento, o corpo físico é perpassado por um corpo sutil, repleto de canais energéticos onde essa energia circula e pode ser ativada ou movida de muitas maneiras, como por exemplo, na prática da acupuntura. Na realidade não há uma separação cabal entre nosso corpo físico e esse corpo sutil, na medicina chinesa se diz que cada vez que movemos uma parte do nosso corpo mobilizamos Chi para essa área, e que mesmo nos vasos sanguíneos também circula o Chi. Esse estágio significa simplesmente uma consciência desse aspecto sutil e a possibilidade de utilizar isso numa luta. A maioria das artes marciais jamais chega a esse nível de sutileza, são o que na China se denomina “estilos externos”, logo, esse é um nível que, apesar de importante, não é estritamente necessário a defesa pessoal.
Chegamos agora à culminância do processo, sem o qual todos os demais passos são completamente inúteis, ou na melhor das hipóteses, não totalmente eficazes numa situação real de vida ou morte: a preparação psicológica. Imagine-se numa situação em que você possui apenas uma fração de segundos para agir antes de ser morto ou ferido gravemente, se você titubear, ou tiver que planejar algo, ou tiver que conscientemente lembrar uma técnica, você terá desperdiçado seus preciosos segundos.  O Kung Fu de Shaolin surgiu num templo de budismo Chan, onde os monges praticavam constantemente a meditação. O Dalai Lama fala muitas vezes da morte e sempre que é questionado sobre sua familiaridade com a morte, ele diz que a experimenta várias vezes ao dia, ao meditar. Assim como no Zen japonês há o ditado de que cada vez que se senta para meditar é como se deitássemos em nosso caixão. Pode parecer mórbido, mas a prática meditativa possui como um de seus efeitos o preparo da consciência para seu desprendimento, visto que deve-se combater a ilusão da personalidade. Numa luta real medo e desejo não têm lugar, o primeiro o prende ao passado e o segundo ao futuro, e a luta está ocorrendo no presente. A real efetividade de uma técnica depende dela ser realizada de maneira natural, espontânea e automática. Isso não é nenhum feito alheio a realidade, qualquer pessoa acostumada a dirigir consegue passar as marchas sem pensar a respeito, até mesmo enquanto conversa com alguém, de maneira automática.
Nem todas as artes marciais possuem técnicas próprias de meditação, ou qualquer outro tipo de preparo, até porque era comum na China e no Japão que as pessoas as praticassem alhures. Além disso, de certa maneira, a própria execução das técnicas pode servir de base para a meditação, talvez o Tai Chi seja o exemplo mais bem acabado do que acabo de dizer, mas qualquer técnica marcial se presta a isso. Ao menos como o nível meditativo mais elementar, chamado no budismo tibetano de Shamata. Além do aspecto do uso prático, ou seja o ataque e defesa real, a preparação psicológica adequada lhe permite manter um estado de atenção que é o que define o verdadeiro artista marcial, e que provavelmente o manterá afastado de problemas que o obrigariam a usar suas habilidades. No Kung Fu Shaolin, as práticas de Chi Kung servem aos dois propósitos de cultivo do Chi e meditativo, assim como as práticas dos Katys e algumas meditações taoístas que se fazem de pé chamadas de Nei Gong. Além da meditação, confesso que desconheço qualquer outro método para preparar alguém para a experiência do combate real. Talvez a exposição a situação reais depois de um treinamento intenso e bastante repetitivo leve ao estado de mente adequado, mas nesse caso estamos colocando o carro na frente dos bois.
Bem, essas são as minhas conclusões, conheço muitas pessoas que duvidam seriamente da existência de algo tão fantasmagórico como o Chi ou algo que o valha, é difícil dissuadir essas pessoas por dois motivos bem simples. O primeiro é que esse discurso foi apropriado por inúmeros embusteiros, indivíduos sem escrúpulos que se aproveitam da tendência de certas pessoas de buscarem a fantasia, e de acreditarem mais em coisas fabulosas. Normalmente, esses supostos mestres se esquecem de salientar que os poderes ou capacidades desenvolvidos com o uso do Chi demandam um treino assíduo e extremamente demorado e que demanda muitas privações. O segundo motivo é que, para qualquer um que já tenha praticado com seriedade Chi Kung, Yoga, ou algum tipo de meditação, ou mesmo Tai Chi ou outro estilo interno, é impossível negar as experiências que se tem com esse tipo de prática. Todavia, essas experiências são pessoais, e é difícil muitas vezes até mesmo descrevê-las.
Com relação à prática da meditação associada às artes marciais, esbarra-se em muitos outros empecilhos. A prática da meditação é muitas vezes vista como algo religioso, e não raro certas crenças são exclusivistas e/ou demonizam as crenças alheias. Nosso dia a dia é muito corrido e vivemos num mundo extremamente materialista e preso a um imediatismo, e se algo não é palpável, ou não me traz resultados imediatos, não é bom. Há também um certo estereótipo de arte marcial que não se coaduna com a meditação, seria a imagem do “pit-boy” grosseiro e rude, para quem algo que não vá aumentar os seus bíceps ou sua capacidade cardiovascular  não interessa. Isso como alguns exemplos, muitos mais poderiam ser elencados. É claro que além desses, ligados a más compreensões e pré-conceitos, existem pessoas sérias e dedicadas ao cultivo da arte marcial que possuem objeções a isso, mas como disse a princípio, falo a partir da minha vivência e do meu percurso, e foram a essas conclusões que cheguei.

sábado, 20 de novembro de 2010

A Onda dos Vampiros ontem e hoje

Outro dia, passeando pela livraria cultura e observando os títulos em inglês me espantei com a grande quantidade de livros sobre vampiros. Além daqueles mais conhecidos e badalados havia um grande número de outras publicações das quais jamais ouvira falar. Dentre os títulos mais conhecidos certamente se destacam os livros da série Twilight, além de alguns outros como Vampire Diaries, que inspirou Twilight e True Blood, meu preferido.

Me espanta e me leva refletir o interesse sobre vampiros, e não apenas vampiros, me espanta mais ainda o crescente interesse sobre zumbis, com um número enorme de jogos, filmes e livros enfocando a temática de um apocalipse repleto de zumbis comedores de cérebros. Em um post futuro, pretendo fazer uma análise mais detalhada em termos de mitologia comparada e psicologia sobre o que significa esse interesse todo por mortos vivos, mas por hora, meu intuito é lembrar ao caro leitor que o interesse por vampiros não é de hoje, e me parece até mesmo algo cíclico e que muito do que se produz sobre vampiros hoje traz a marca da antiga “onda” de sanguessugas.

Muitos anos atrás houve um interesse crescente sobre vampiros, um tema que a época parecia, com o perdão do trocadilho, morto. O filme Drácula de Bram Stoker, com os excelentes atores Gary Oldman, Winona Rider, Anthony Hopkins, e Keenu Reeves e a sempre lindíssima Monica Belluci e dirigido pelo ótimo Francis Ford Copolla, nos idos de 1992, foi um dos marcos do ressurgimento dos vampiros. Baseado no clássico do escritor irlandês Bram Stocker, o filme retratava o famoso conde Drácula. Ainda na década de noventa, para ser mais preciso, em noventa e quatro, outro filme sacudia a poeira dos caixões e fomentava o interesse de uma geração inteira pelos vampiros, era Entrevista com o Vampiro, com os atores Brad Pitt, Cristian Slatter e Tom Cruise, além da participação de Antonio Bandeiras. O filme se baseava no livro homônimo de Anne Rice, escrito em 1973 e publicado em 1976 e que com a ajuda do filme, ajudou a imortalizar o vampiro Lestat. As “crônicas vampirescas” contaram ao todo com dez livros de grande sucesso.



Ainda na década de noventa, Wesley Snipes fazia sucesso com o fraquíssimo Blade: o caçador de vampiros. Diferente dos outros filmes, neste, baseado não em literatura, mas em quadrinhos da Marvel, os vampiros não eram seres sobrenaturais, mas pessoas infectadas por uma doença ou vírus que lhes dava poderes e fraquezas de vampiros. Nas lutas mostradas no filme, Snipes destruía dezenas de vampiros, que pareciam ser feitos de papelão, com uma facilidade assustadora.



Todavia, de toda a onda de dentuços e sanguessugas da década de noventa, nenhum outro título foi mais abrangente e posteriormente copiado, do que a série de livros de RPG criada por Mark Rein Hagen Vampire the Masquerade. É preciso que se diga logo de início que a principal idéia original de Rein Hagen, talvez a única, tenha sido possibilitar aos jogadores ser vampiros. Ele tirou os vampiros do batido papel de antagonistas e deu a uma geração de jogadores de RPG a possibilidade de se tornarem as próprias criaturas das trevas, ou “Cainitas” como eram chamados no jogo. Tudo o mais nos livros de Rein Hagen é derivativo ou plágio descarado, uma imensa colcha de retalhos, mas que mesmo assim, estabeleceu todos os clichês do gênero que são seguidos a risca pelos vampiros do século vinte e um.



A rivalidade entre vampiros e lobsomens, que é algo hoje quase canônico, é algo copiado dos livros de Vampire The Masquerade, a atitude de segredo e discrição dos vampiros, e a preocupação de manter sua existência um segredo dos meros mortais, como pode ser visto hoje em dia em Twilight, é o tema central de Vampire, a tradição da “máscara” o segredo da existência dos vampiros no mundo moderno. O meu seriado de vampiros preferiod True Blood, subverte esse clichê do gênero que se popularizou com os livros da White Wolf, a editora de Rein Hagen, em True Blood todos sabem que vampiros existem. Os Vulturi em Twilight, são um arremedo da complexa e extremamente intrincada e multifacetada sociedade “cainita” descrita com riqueza de detalhes nos muitos livros de Vampire. No início, o RPG de Rein Hagen pretendia ser um jogo de horror pessoal, mas logo descambou para aquilo que se tornaria sua verdadeira vocação: illuminati. Um jogo de intriga política, com dezenas de clãs lutando por controle sobre o mundo sobrenatural e o mundo mortal.

Os livros da White Wolf, cujo primeiro de centenas de títulos foi Vampire the Masquerade lançado em 1991, fizeram estrondoso sucesso. O jogo possuía um sistema de regras muito ruim, utilizando dados de dez faces, mas empolgava pela temática. Havia treze clãs de vampiros a princípio, cada um com poderes e fraquezas específicos e uma sociedade vampirica a “camarilla” que organizava as cidades e “principados” e mantinha as leis e “tradições” ancestrais dos vampiros. A série de filmes Under World é francamente baseada no mundo “gothic-punk” mostrado nos livros de Vampire e chega quase a ser um plágio descarado. O que é talvez sua maior homenagem a Rein Hagen, que não teve pejos de copiar tudo o que havia disponível sobre vampiros e usar em seu livro. Os Xerifes vampiros e tribunais de vampiros mostrados em True Blood são cópias da organização Camarilla de Rein Hagen, que foi esmiuçada e detalhada a exaustão em dezenas de suplementos de RPG e romances. Assim como em True Blood e Twilight, os vampiros de Rein Hagen viviam, ou morriam não sei, um conflito entre preservar suas naturezas humanas ou ceder aos seus instintos predatórios, a “besta”. Esse era o mote do “terror pessoal” do jogo, mas logo tornou-se um elemento secundário, dando espaço para a intriga política e a paranóia como temas principais.



No Brasil também tivemos nossa cota de sanguessugas, sem trocadilhos, o autor André Vianco, tornou-se notório por suas histórias de vampiros. Eu li a princípio “O Sétimo” e depois “Os sete” e gostei muito, mas qual não foi a minha decepção ao descobrir que os demais livros desse autor eram extremamente ruins, a exceção dos dois já citados. Suas demais obras não me agradaram, nem um pouco na realidade. Bem, está longe de chegar o dia em que será colocada em definitivo uma estaca no coração dessa onda de vampiros, que parece sempre se renovar, na TV no cinema e nas páginas dos livros. Ao invés da fraquíssima Buffy, ou do ainda pior Angel (spin off de Buffy), temos o ótimo True Blood, e ao invés do excelente “Interview with the Vampire” temos o fraco Twilight. É, ganha-se umas perde-se outras...





quarta-feira, 17 de novembro de 2010

1808 e 1822

O título do post se refere aos títulos de dois livros de divulgação científica do jornalista e escritor Laurentino Gomes. Os livros, que fazem parte de uma trilogia sobre o século XIX se destinam ao público leigo e procuram popularizar e revitalizar o interesse pela história do Brasil. Para começo de conversa, eu não li os livros, nesse momento vocês devem estar se perguntando o motivo de eu estar aqui escrevendo sobre eles, o que me leva a uma história curiosa. Ontem eu assisti por engano, junto do meu irmão mais novo Iago a palestra realizada na Livraria Cultura pelo autor dos dois livros em questão. Na realidade eu acreditava que ontem seria a palestra de um americano que escreveu uma biografia sobre Clarice Linspector, devido a isso larguei todos os meus compromissos e fui ver a tal palestra, que na verdade acontecerá hoje, como podem ver sou um homem a frente do meu tempo. Acontece que estava realmente acontecendo uma palestra e para não perder a viagem fiquei por lá e assisti.

Acontece também, que de todos os meus interesses, apenas a história ainda não havia sido contemplada no meu blog, daí eu estar escrevendo sobre a tal palestra. Que fique claro que estou escrevendo especificamente sobre a fala que escutei do tal Laurentino Gomes, por sinal um sujeito bastante afável e que lotou o auditório da Cultura, com muitas pessoas assistindo a palestra em pé ou sentadas nas laterais.

A divulgação científica é um trabalho importante, de alguma maneira, creio que de uma forma bem mais modesta, faço algo parecido aqui. Também é importante frisar que, qualquer um que faça as pessoas lerem merece o meu aplauso, e esse parece ser o caso do autor, Laurentino Gomes. Há alguns anos atrás, estava numa casa de praia com amigos e junto de uma amiga bióloga eu deplorava a revista Super Interessante, um amigo jornalista tomou para si o encargo de defendê-la e usou um argumento interessante “nem todo mundo é cientista e historiador”, o que é um fato inelutável. Mesmo as pessoas sem formação específica nessas áreas possuem interesse sobre esses temas e o direito de se informar, essa conversa, provavelmente já esquecida pelos outros dois interlocutores me abriu os olhos. Não obstante, há um papel crítico importante a ser desempenhado pelo especialista, papel do qual ele não deve se furtar.

Como de costume, quando começou a seção de perguntas e todos estavam meio inibidos, eu fui o primeiro a perguntar algo, e perguntei sobre a relação dele com os historiadores e sobre o fato, óbvio para um historiador, que ele não estava escrevendo um tratado de história, mas sobre memória. Com o claro intuito de revitalizar a memória do povo brasileiro para sua própria história, desempenhando papel similar ao que os historiadores e folcloristas alemães do século XIX tiveram para dar coesão e identidade ao país recentemente criado.

Ele me respondeu a princípio dizendo que havia recebido elogios e críticas e que acreditava que um jornalista podia escrever reportagens sobre qualquer coisa, inclusive história do Brasil, de fato. É preciso também lembrar, que alguns dos grandes nomes da historiografia mundial não eram historiadores de formação, mas o eram de fato. No caso do autor, ele não fala do lugar do historiador, mas fica claro que ele não abandona jamais os sapatos de jornalista. Quanto à segunda pergunta, sua resposta foi bastante simplória e equivocada, fazendo uma separação artificial entre a narrativa e a teoria e a compreensão acerca dos fatos.

Nesse ponto, por mais que eu seja simpático a iniciativa do autor, não posso me abster do meu papel de especialista. O autor desconhece ou se esquece de que “não há história em um problema”, não é debalde que a narrativa saiu de moda nos círculos de história. A narrativa por si mesma, dependia da noção da história metódica de “fato histórico objetivo”, no sentido da existência de um “fato” observável pelo historiador, como talvez, um biólogo observa microorganismos pelas lentes de seu microscópio, daí esses fatos puderem ser narrados. Na resposta do autor ele afirmou que a teoria tinha de vir depois da narrativa, essa bem simples e didática, para que as pessoas soubessem os fatos. Infelizmente, os fatos não existem por si mesmos. A grande contribuição teórica da escola dos Annales francesa foi à noção da “construção do fato histórico”. O fato existe na medida em que é criado pelo historiador, e não de maneira objetiva, independente do historiador. A história é “imaginação sobre o que já foi imaginado”, e é estranho que ele não se aperceba disso, pois citou reiteradas vezes Sérgio Buarque de Holanda, que se dizia um “historiador impressionista”. Num sentindo Kantiano mais profundo, toda história é uma mentira, pois sempre há de se tratar de perspectiva, jamais do fato ontologicamente puro.

Além disso, mais de uma vez ele apelou para o “ídolo da origens” e para o jargão, ou clichê, mais do que batido de que “precisamos conhecer o passado para compreender o presente e nos prepararmos para o futuro” e da velha e coroca explicação positivista para o presente do “arco hermenêutico”  onde os fatos do presente só podem ser entendidos se compreendidas suas “raízes” (para usar o termo usado por ele) do passado, esquecendo-se da revolução proposta por Marc Bloch de que o interesse da história é justamente o oposto, não do passado para o presente, mas do presente para o passado. Para o historiador, interessa muito mais o presente! Em que pese também o interesse didático dele, de ensinar história, pois o que há de mais moderno em termos de ensino de história é que antes de se ensinar os fatos e narrativas, interessa mais munir os alunos dos instrumentos da crítica historiográfica, justamente, e novamente, o oposto do que afirmou o autor em resposta a minha indagação. No frigir dos ovos, trata-se da velha história positivista, linear e política travestida de algo novo pela linguagem romantizada, algum viés crítico, e fatos curiosos que prendem a atenção do leitor.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Kung Fu

O termo Kung Fu normalmente é mal compreendido e gera muita confusão. De modo mais geral ele significa, ou designa “arte marcial chinesa”. Seria algo como se o termo Karate designasse todas as artes marciais japonesas, então você usaria a palavra Karate para designar tanto o Judô, quanto o Aikido ou o Kendo e Iaido; como podem ver é algo bastante confuso, visto serem artes marciais bem diferentes. O Aikido e o Judô e o Karate tem em comum um aspecto geográfico, todos são originários do arquipélago do Japão. De modo geral, o termo Kung Fu utiliza esse mesmo denominador comum, são chamadas de Kung Fu todas as artes marciais provenientes da China. Em Taiwan se utiliza um termo muito mais apropriado para esse sentido, Kuo shu (國術) que literalmente significa “arte nacional”.
Todavia, se tentarmos traduzir o termo Kung Fu de maneira mais literal, teríamos um conceito próximo aquilo a que os gregos denominavam virtude (ρετή), de onde até hoje vem a nossa palavra “virtuoso”, no sentido por exemplo de um grande violinista que atingiu elevado grau de excelência. Para os gregos, virtude era a capacidade de fazer ou executar algo com excelência. O sentido de Kung Fu é praticamente o mesmo e seria até mesmo uma tradução aproximada bastante apropriada. Em chinês Kung Fu se escreve (功夫) o primeiro caractere significa trabalho, o segundo é um Hanzi (caractere chinês) arcaico que designa homem, ou homem superior, na acepção confuciana de cavalheiro. Nesse sentido mais literal, o termo poderia ser livremente traduzido como “esforço para se tornar um cavalheiro” ou “trabalho para ser um homem superior”. Esse esforço despendido, tem o mesmo sentido de virtude já discutido, pois designa não apenas um artista marcial que tornou-se habilidoso, mas qualquer um que em sua área de atuação (sejam finanças ou culinária) atingiu elevado grau de maestria. Daí a similaridade com o conceito do humanismo grego de “Virtude”.
Outro termo que designa a arte marcial chinesa é Wu Shu (武術) o primeiro caractere significa “marcial” e o segundo “arte”, logo, literalmente Wu Shu é “arte marcial”. Todavia, as palavras são polissêmicas, possuem vários sentidos e em sua história, acabam adquirindo sempre novos sentidos ou perdendo seu sentido original. Hoje em dia, se alguém perguntar a um praticante de Kung Fu sobre Wu Shu, ele quase certamente vai lhe falar sobre um esporte altamente competitivo, acrobático em certa medida similar a ginástica olímpica. Isso porque uma modalidade muito popular de desporto marcial é o “Wu Shu olímpico”, que por comodidade ou preguiça virou simplesmente “Wu Shu”. O que gera ainda mais confusão.
Ainda assim, é interessante examinar o sentido do termo Wu Shu, especialmente do Hanzi Wu “”. Esse Hanzi é formado pelo radical “” que significa parar e o restante do caractere simboliza um machado. O machado é um símbolo de violência, donde podemos deduzir que o sentido de marcial expresso nesse ideograma é o de “parar a violência”. Há um ditado confuciano na China que diz que “não se usa bom ferro para se fazer pregos, assim como não se usa bons homens para se fazer soldados”. Diferente do Japão, as artes guerreiras não eram muito valorizadas e se restringiam, em muitos casos, as classes mais baixas e iletradas, e tinham o intuito claro de ser um meio de interromper a violência, de ser um instrumento de pacificação. O que pode num primeiro momento soar como um paradoxo, torna-se mais claro quando se recorda que a grande “Meca” do Kung Fu chinês foi o templo de Shao Lin, um templo de budismo Chan (ou Zen como foi chamado no Japão).
Existem ainda os termos de “arte marcial interna” e “arte marcial externa”. O primeiro termo erroneamente é também chamado de estilos de Wu Dang (um famoso templo taoísta), ou estilos Taoístas, e as assim chamadas externas são também erroneamente associadas ao budismo ou ao templo de Shao Lin. As artes internas ou Nei Jia (内家) é também um termo de uso problemático, e normalmente utilizado de forma confusa ou claramente equivocada.
As, assim chamadas, Nei Jia são as três mais conhecidas artes marciais internas e as primeiras a se autodenominarem dessa maneira: Xing Yi Quan (形意拳), Ba Gua (八卦) e Tai Ji Quan (太極拳). Atualmente essas artes marciais são muito conhecidas e todas elas estão relacionadas muito fortemente as práticas de longevidade e manutenção da saúde física e mental, e são fortemente associadas à Filosofia Chinesa e o Taoísmo. Todavia, nos anos 1800, quando essas artes marciais conheceram grande popularidade entre grupos de indivíduos interessados nos aspectos práticos e nas possibilidades reais de combate, não havia muita conversa sobre manutenção da saúde, a não ser se você considerar não ser derrotado numa luta real uma forma de se manter saudável, nem tão pouco havia um interesse pela maioria dos praticantes pelos aspectos filosóficos e abstratos, menos ainda eram elas associadas a uma mesma família ou denominadas Nei Jia. Nessa época, as pessoas que praticavam essas artes eram em sua maioria fazendeiros sem qualquer educação formal que as estudavam para obter trabalhos como guarda-costas, vigias de residências de famílias ricas, escoltas de caravana ou caçadores de recompensa. As pessoas educadas na China viam os artistas marciais com profundo desprezo, e os tinham como não mais que rufiões de baixa categoria .
O próprio Sun Lu Tang admite a existência desse preconceito no prefácio de seu famoso livro. Isso era tão patente que após o lançamento do primeiro livro de Sun Lu Tang, um erudito de Beijing ao lê-lo, imediatamente concluiu tratar-se de uma fraude. Como era possível que um famoso lutador pudesse ter tão profundo e vasto conhecimento de Filosofia Chinesa e Taoísmo? Ele não tardou a procurar Sun Lu Tang e só se convenceu de que ele realmente havia escrito o livro após sabatiná-lo por quase um dia inteiro acerca dos clássicos, e ficou profundamente estarrecido ao perceber que um homem tão proficiente em lutas era também um erudito.
O primeiro grupo conhecido de artistas marciais e unir essas três artes sob o nome de “família interna” surgiu em 1894, quando os mestres Cheng Ting Hua (程廷華) e seus amigos Liu De Kuan (刘德宽), Li Cun Yi (李存义) e Liu Wei Xiang se uniram para formar uma organização de artistas marciais com o propósito de melhorar o nível de suas respectivas artes, aumentarem a harmonia nos turbulentos círculos de artes marciais, e elevarem o nível das habilidades de luta de seus estudantes. Nesse grupo Cheng Ting Hua representava a escola de Ba Gua, Liu De Kuan representava o Tai Ji, Li Cun Yi e Liu Wei Xiang representavam o Xing Yi. Eles decidiram que cada um dos seus estudantes poderia livremente aprender com os outros, e que, mesmo com as várias diferenças entre suas técnicas em cada escola particular, eles eram da mesma “família”.
A princípio, para nomear essa família de artes marciais o grupo as chamou em conjunto de Nei Jia Quan, “boxe da família interna”, posteriormente eles descobriram que já existia uma arte marcial com esse nome, eles então mudaram o nome para Nei Gong Quan, “boxe da habilidade interna”, mas já era tarde demais, o nome Nei Jia Quan já havia pegado. Essa confusão acerca dos nomes levou a um mal entendido, as três artes também passaram a ser conhecidas como “Boxe de Wu Dang”. Esse nome leva a mais um mal entendido, pois passa a falsa impressão que as três escolas podem traçar sua origem até o lendário templo Taoísta localizado na montanha de Wu dang, quando na realidade apenas o Ba Gua evoluiu diretamente de práticas Taoístas.
Durante a Dinastia Ming havia um artista marcial chamado Sun Shi San que praticava um estilo de boxe que era chamado de Nei Jia. O primeiro registro escrito desse estilo apareceu por volta do final da dinastia Ming. Um praticante de Nei Jia Quan chamado Wang Zheng Nan teve um estudante, Huang Bai Jia. Quando Wang Zheng Nan morreu, Huang Zong Xi escreveu um panegírico para ele que falava de seu estilo de boxe e dos eventos de sua vida. Huang Bai Jia subsequentemente tomou o que se pai havia escrito sobre o estilo de boxe de seu professor e publicou em um livro que ele chamou de Nei Jia Quan, que foi publicado em algum momento da dsnastia Ming ou no início do período Quin, Huang Bai Jia escreveu que essa arte havia se originado com o taoísta Zhang San Feng na montanha de Wu Dang. (SUN LU TANG, tradução minha).
Como é fácil perceber, as várias terminologias utilizadas pelas artes marciais chinesas têm um uso bastante confuso e controverso, vários desses termos são mal utilizados ou mal compreendidos. O que não é realmente uma novidade na história das artes marciais chinesas, visto a China ser um país de dimensões continentais e ter uma longa e venerável história, sempre houve diferentes denominações dependendo da localização geográfica ou do período histórico em questão, já tendo sido utilizado para denominar “arte marcial” em geral os termos Shao Lin, ou mesmo Luo Han (Buda), devido a origem das artes marciais chinesas ser tradicionalmente atribuídas ao templo budista de Shao lin.

domingo, 14 de novembro de 2010

Ben 10 Ultimate Alien





O meu blog não possui uma temática específica, na realidade ele surgiu devido ao fato de que eu costumo escrever em profusão e apenas algumas pessoas lêem o que escrevo. Mas mesmo sem uma temática específica, normalmente meus textos aqui versam sobre meus interesses, alguns bem sisudos, outros nem tanto. Um dos meus interesses mais lúdicos é por desenhos animados, e já escrevi aqui sobre o mangá e anime Naruto, o meu preferido. Pois bem, hoje vou escrever sobre a nova série do Ben 10: Ultimate Alien.

O título se refere ao novo poder do Omnitrix, um mecanismo evolucionário que permite que alguns dos aliens (ou todos, isso não fica claro) se transformem em versões mais fortes deles mesmos. O desenho mantém o mesmo padrão de Ben 10 Alien Force, com algumas novidades no enredo e com roteiros um pouco mais interessantes que os da série que o precedeu. Devo dizer que a série original foi para mim uma grata surpresa, em meio aos desenhos normalmente chatos ou simplesmente infantilóides normalmente produzidos nos EUA (reclamar da puerilidade de um desenho me parece um tanto estranho mas...) a série Ben 10 saltava aos olhos pela criatividade do argumento, a diversão, e a qualidade do roteiro, além do fato dos personagens se desenvolverem ao longo da série. Com alguns personagens realmente memoráveis como o vovô Max e Kevin, que é um dos vilões nessa primeira temporada. No entanto, Vilgax, o principal antagonista deixava muito a desejar. Ele era basicamente um clichê, super poderoso e mal (sem motivo ou explicação aparente) e desejava o omnitrix para dominar o universo, nada mais batido. Para piorar o clichê, por mais forte que ele fosse, e por mais recursos que tivesse a sua disposição, era repetidas vezes derrotado.

A nova série Ultimate Alien, conta com algumas novidades no roteiro que a torna um pouco mais interessante. Ben se tornou famoso, um moleque colocou na internet provas de que ele é um herói capaz de se metamorfosear em aliens. Com a fama repentina surgem inúmeras complicações que a série explora de maneira interessante. O novo poder do omnitrix, apesar de trazer alguma novidade, não acrescenta muito a série e a torna mais parecida com sucessos como Pokémon, pois nessa nova fase além das evoluções, Bem pode colecionar DNA alienígena para novas transformações. Mas a grande novidade que tem tornado a série bem mais interessante é o seu novo vilão: Agregor.





Diferente de Vilgax, Agregor está longe de ser um clichê (claro que há elementos inevitáveis), por exemplo, ele não dá a mínima para o omitrix. Além disso, ele é poderoso e cheio de recursos, mas diferente de Vilgax, isso não é o principal. Agregor é um Osmosian e basicamente possui os mesmos poderes que Kevin. Com o advento de Agregor fica explicado que o pai de Kevin também era da espécie de Agregor. Ambos podem absorver matéria e energia. Esse poder está longe de ser uma novidade, um vilão de quinta categoria da Marvel Comics, o “homem absorvente” já possuía essas habilidades. Copiar esses poderes também não é novidade, um dos personagens do descartável Gen 13 – série de quadrinhos da Image – também demonstrava essas habilidades, mas Agregor e Kevin são bem mais interessantes que ambos. Diferente de Vilgax, Agregor se vale principalmente de sua inteligência, ele nunca confronta Ben desnecessariamente, e quando o faz, costuma derrotá-lo com facilidade. 


Num episódio, Agregor está em busca de um artefato, Ben, Kevin e Gwen vão a um planeta inóspito conseguir o artefato primeiro. Os três derrotam dezenas de aliens, um monstro de duas cabeças e inúmeras armadilhas e diante da entrada da câmara do artefato, Kevin e Ben têm que erguer uma porta pesada e Gwen vai a frente pegar o artefato enquanto eles fazem força. Infelizmente ela desmaia devido a um ferimento com um dardo envenenado e os dois ficam sem saber o que fazer. Nesse exato instante surge Agregor, que os estava seguindo e deixando todo o trabalho para eles, pega calmamente o artefato e parte.

A personalidade de Agregor e seus métodos, muito mais sutis e refinados do que os de Vilgax, que era basicamente um brigão, tornam a série bem mais interessante. No mais, a nova fase permanece muito parecida com a fase que a precedeu, mas sem o clima de “arquivo X” que caracterizou Ben 10 Alien Force. A nova série também traz dicas de que haverá uma continuação, e algumas vezes utiliza uma metalinguagem bastante sutil e inteligente, como quando num episódio um apresentador de TV resolve atacar Ben ao vivo e ao ver os índices de audiência declara extasiado “as pessoas adoram assistir Ben 10”.

Apesar de interessante e divertida, a série está longe da qualidade dos melhores animes japoneses ou mesmo do desenho americano Avatar: the last airbender. Até o momento, mesmo com seus pontos fracos, a série não me desapontou num dos quesitos principais: diversão. O que é bom, tive ótimos desenhos para assistir quando era moleque, como o inesquecível Jonny Quest, e quero que meu filho Ícaro tenha também boas lembranças. Sei que Ben 10 certamente vai figurar entre as recordações agradáveis da meninice do Ícaro.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A Tradição Mahayana

Mahayana significa “grande barco”, ou “grande veículo”, ela é a tradição de onde provêem o Zen japonês, o Chan chinês e o Budismo Tibetano. Essa tradição é mais recente que a Theravada, ou como é comumente conhecida Hinayana. Hinayana significa “pequeno Barco” ou “pequeno Veículo”, pois a essa tradição, mais antiga que a Mahayana, dedicava-se ao ideal de salvação individual através da disciplina monástica. O sentindo da Hinayana era que você tornar-se um Aharat, um santo livre de todas as paixões e liberto do incessante ciclo do Samsara governado pela ilusão de Maya. Na tradição Hinayana não havia qualquer tipo de representação de Buda, pois Buda era aquele que não mais se identificava com a ilusão do ego, então, por exemplo, ao se representar as tentações de Kama-Mara, desenhava-se de um lado as apsaras (ninfas) de Kama de um lado de um trono e do outro os ogros da morte de Mara, mas o trono estava vazio. Não se podia representar aquele que havia transcendido a personalidade e que não mais se identificava com essas ilusões.

Temos então o surgimento da tradição Mahayana, e passa-se a ter uma grande profusão de imagens de Buda, não apenas do Buda histórico, Shakyamuni, mas de toda uma miríade de Budas transcendentais e Bodhisattva “aquele cujo corpo é a iluminação”. O ideal passa a ser não mais o do santo Aharat retirado do mundo, que não passa de uma ilusão de Maya, para adentrar ao Nirvana, mas o do Bodhisattva “aquele que escolhe viver em júbilo em meio às tristezas do mundo”, mesmo tendo atingido a perfeita realização e podendo adentrar ao Nirvana o Bodhisattva escolhe permanecer no samsara “até que o último talo de grama atinja a iluminação”.

Na tradição Mahayana cai por terra à dualidade entre ignorância e iluminação, etre Nirvana e Samsara, a natureza de Buda está em todas as coisas e a ignorância e a iluminação são entendidas como a lâmina e a pedra de amolar, as duas se desgastam uma na outra e ao final nenhuma das duas resta. Nunca houve nem uma nem outra, não há diferenciação alguma, Nem mesmo entre Samsara e Nirvana, Tat Tvam Asi “tu és isto”. Tudo é Buda, logo qualquer objeto, por mais insignificante que seja, é uma representação do mistério último do ser.o Bodhisattva está no mundo, mas livre dos pares de opostos de medo e desejo, ele age com total desapego, cada um de seus atos é compassivo pois só existe um objeto se houver um eu para contemplá-lo. Segundo Campbell “esse desapego psicológico de suas paixões em relação aos eventos de sua vida é o nirvana”.

Essa compreensão está expressa em muitas das deliciosas historietas Zen que eu tanto aprecio, e assim como analisei algumas delas tendo como base para o entendimento a Vacuidade, apresento aqui algumas dessas histórias que expressam essa verdade fundamental do Mahayana, a não existência de dualidade, pois a natureza de Buda está em tudo, e que no fundo, é uma expressão da vacuidade. Toda a experiência, todos os conceitos e rótulos, toda a percepção dualista baseada na ilusão de uma identidade em separado que observa um objeto que não é ela mesma, é vazia de realidade intrínseca, ilusória e impermanente.

Começo com uma historieta japonesa das mais engraçadas, mas antes é preciso uma nota explicativa para que o trocadilho fique claro. A palavra Kami pode ser escrita de três maneiras diferentes: 紙 que significa papel, 髪 que significa cabelo, e por fim, 神 que significa espírito, divindade.

Um casal estava em viagem de peregrinação por vários santuários Xintoístas, durante sua caminhada a mulher disse ao homem que precisava aliviar a bexiga e por isso iria fazer suas necessidades atrás de uma árvore, o marido a repreendeu, pois ela haveria de insultar o kami da árvore, e continuaram caminhando, e sempre que ela sugeria um lugar para fazer suas necessidades ele explicava que ali vivia um kami que havia de se ofender, fosse uma pedra, um regato ou um arbusto, por fim o homem (que era careca) se abaixou para pegar algo no chão e ela esvaziou a bexiga na cabeça dele exclamando “aqui não há nenhum kami!”.

Um dia, um jovem de nome Yang Fu deixou seus pais e foi a Sichuan visitar Wuji, que era um Bodhisattva. Quando estava na estrada Wuji o interpelou e perguntou onde ele ia, ao que ele respondeu que pretendia estudar com Wuji o Bodhisattva. Wuji o admoestou: “em vez de procurar um mero Bodhisatva, é melhor procurar Buda” o jovem ficou intrigado e perguntou: “sabe onde posso encontrá-lo?”, “quando voltar para casa, uma pessoa usando uma manta e chinelos trocados o cumprimentará. Essa pessoa é Buda”. Yang Fu retornou rapidamente, chegando em casa tarde da noite. Em sua alegria e pressa em cumprimentar o filho a mãe de Yang cobriu0se com uma manta e calçou os chinelos trocados. Ao vê-la, Yang Fu imediatamente se iluminou.

Essa história expressa de maneira divertida a máxima Zen de que “se encontrar o Buda mata-o!” toda imagem de Buda é uma representação não de algo externo a nós mesmo, mas de nossa natureza fundamental de sabedoria. Essas imagens são ferramentas para a meditação, e apontam para além delas mesmas. Não há sentido em se procurar um Bodhisattva para se compreender o caminho que conduz a cessação do sofrimento, pois nesse caso se está concretizando a imagem do Buda e caindo nas malhas da rede da ilusão da dualidade, ao retornar e enxergar sua própria mãe como Buda, Yang Fu realizou esse ensinamento e obteve a iluminação.

Certa vez, um budista foi às montanhas procurar um mestre que o fizesse atravessar os portões do Zen. Ao encontrar o mestre e lhe explicar sua intenção, este lhe respondeu com uma pergunta: “vindo para cá você passou por um vale?” ele respondeu afirmativamente, “você por acaso ouviu o som do vale?”, ao que ele novamente respondeu que sim. “o local onde ouviu o som do vale é onde começa o caminho que leva aos portões do Zen”. Novamente vemos um mestre despedaçando as tentativas de concretização de um de seus alunos, noutra história famosa, um aluno perguntou ao mestre o segredo do Zen, e este em resposta o conduziu até um arbusto e o mostrou a ele “se achas que te escondo algo, ali está o segredo do Zen”.
Certa vez um discípulo interpelou seu mestre “mestre, um cipreste possui a natureza de Buda?” “sim” foi a resposta lacônica do mestre. “quando se tronará um Buda?” “quando o céu cair”, “e quando o céu cairá?”, “quando o cipreste tornar-se um Buda!”.

Um dia Linji foi visitar um pagode construído em homenagem de Bodhidharma, ao chegar lá um monge o interpelou e indagou a quem ele prestaria homenagem primeiro, a Buda ou Bodhidharma. Linji respondeu que não prestaria homenagem a nenhum dos dois, o monge ficou muito irritado e indagou “e o que eles fizeram para você?” como resposta Linji apenas se virou e partiu.

Certo dia um discípulo se despedia do monge Niaowo e este lhe indagou para onde ele ia. “vou viajar pelo país estudando o Dharma-Buda”, sorridente Niaowo replicou “falando no Dharma-Buda, tenho um pouco disso aqui”. Ao ver a cara de estupefação do jovem monge, Niaowo puxou um fiapo de seu manto e indagou “isto também não é o Dharma-Buda?”.

Certa vez, ao ser indagado sobre o que era o Tao, o mestre Yaoshan deu uma das respostas que considero mais belas das que já tive a oportunidade de conhecer através da tradição Zen “Nuvens no céu azul e água num cantil”. Com a bela resposta de Yaoshan me dou por satisfeito em meu intento de inutilmente tentar elucidar algumas historietas Zen.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Arte Marcial

Desde os seis anos de idade pratico artes marciais, e desde a minha adolescência estudo ou pratico budismo, taoísmo e confucionismo. Esse fato me colocou sempre em um conflito que acredito muitas pessoas também enfrentam, consciente ou inconscientemente, pois ao lidar com os frutos da cultura oriental, nos colocamos em uma senda um tanto quanto complicada, pois nossa cultura ocidental (por mais que esses termos de cunho mais coletivo sejam hoje alvo de críticas) se funda em bases muito diversas, em premissas quase opostas, e não podemos simplesmente, mesmo que se queira, nos desenraizarmos e abandonar os símbolos e metáforas em que fomos educados e os princípios mais gerais de nossa educação e cultura. Por isso, acaba-se por tomar uma de duas sendas terrivelmente equivocadas: ou se pratica uma arte marcial sem se importar com seu aspecto espiritual e filosófico, tornando-a uma disciplina meramente física, desprezando um tesouro de sabedoria que a torna algo mais do que um instrumento de violência, ou, por outro lado, acaba-se por se encantar com os símbolos e metáforas de alguma cultura oriental, que parecem mais vivos, novos e interessantes que aqueles em que crescemos e fomos educados desde a infância e ocorre um processo estranho e voluntário de aculturação onde, de maneira danosa a alma, se despreza nossas imagens ancestrais e crenças.
Essas duas sendas, mais comuns, são caminhos que podem com grande facilidade levar ao abismo. Sem seu aspecto filosófico, e a compreensão do contexto cultural específico de uma arte marcial, que envolve uma gama variada de aspectos simbólicos, míticos, alguns que tocam o humano geral e outros particulares de um determinado povo e um determinado tempo, a arte marcial é reduzida a um arremedo patético do que realmente é, e pode ser utilizada apenas como arma. Os rituais e símbolos míticos que regulam e dão um sentido vivo as passagens e transformações de nossa vida, e que nos ajudam a nos ajustar a uma sociedade em particular e ao mistério da vida, não existem à toa. Não é preciso um grande esforço de imaginação para compreender o sentido de “terra devastada” freqüentemente utilizado por Campbell para se referir ao sentimento de se viver numa sociedade “desmitologizada”, onde os grandes rituais foram abandonados e os símbolos ancestrais que alimentavam de vida nossa psique perderam a sua força. Basta ler os jornais ou assistir aos programas de TV dedicados exclusivamente as notícias policiais.
No Shaolin do Norte, estilo que pratico há uns 14 anos e onde me formei professor, no salão de treino há uma placa vermelha colocada próximo aos quadros da linhagem dos mestres já falecidos, uma das coisas escritas lá é que ao aluno “se ensina primeiro literatura e civilidade”, só depois arte marcial. É preciso que todos os jovens nasçam duas vezes, no sentido de serem introduzidos na cultura de uma maneira adequada, possam realmente se tornar membros da tribo, ou de uma civilização específica, com seu ethos próprio, esse é o sentido dos rituais de iniciação das tribos primitivas, onde ocorre toda a sorte de coisas assustadoras e dolorosas e muitas escarificações e marcas permanentes no corpo do jovem iniciado, e onde lhe são transmitidos de maneira dramática os símbolos que irão lhe orientar a assumir seu papel naquela sociedade. Sem isso, somos forçados a fazer essa passagem, cruzar esse importante limiar sozinhos. Na arte marcial não é diferente, os símbolos estão todos lá, com essas mesmas funções. Eu nem consigo contar de quantas maneiras diferentes eu sei quebrar ossos ou aplicar golpes que podem ser fatais, além de um monte de armas que sei usar (minha predileção é pela espada reta), todas essas armas se usadas da maneira correta contra alguém têm um resultado devastador. Uma das primeiras funções da metáfora dos mitos é justamente preparar o indivíduo para o horror da vida, que se alimenta incessantemente de vida. Os povos caçadores, que subsistiam da matança, sempre com as mãos sujas de sangue, tinham que lidar com os efeitos psicológicos desses atos: a culpa e o medo de vingança por parte dos espíritos dos animais. Por isso, nos mitos dos caçadores de búfalos das grandes planícies da América do Norte, os búfalos apareciam como vítimas voluntárias, pois os rituais e danças executados pelas tribos os trariam de volta a vida – assim como novas manadas reapareciam ano a ano – em algumas tribos da áfrica, um guerreiro após matar alguém numa guerra, era trancafiado numa tenda por algum tempo com uma dieta estritamente vegetariana.
Semana passada, assisti a uma palestra interessante de um mestre de Wing Chun chamado Benny Meng, e uma parte da fala dele me chamou muita atenção. Ele disse que havia quatro razões ou formas de se praticar uma arte marcial. A primeira era com o objetivo de “Fitness”, fazer uma atividade física, bastante lúdica e que não é repetitiva com o intuito de ter um corpo mais saudável. A segunda para praticar um esporte de combate, lutando com outras pessoas num ambiente controlado e com regras para restringir golpes que causem lesões sérias ou morte. A terceira como defesa pessoal, para lidar com as vicissitudes de um combate real, onde alguém está tentando lhe matar ou machucar de verdade, sem regras ou proteções. A última, como forma, ou caminho de aperfeiçoamento pessoal. As quatro são muito diferentes entre si, mas apenas a segunda exclui as demais, as outras três se completam. E na minha opinião, não se pode ensinar alguém a lutar “sem antes ensinar literatura e civilidade”. Do contrário, passa-se a ter um falso sentimento de poder, que pode ser muito perigoso. Sempre digo aos meus alunos, com o tempo, passa-se a perceber que com a técnica correta é muito fácil se quebrar um braço ou um pescoço, e se percebe como o corpo pode ser frágil e impermanente, mas o passo seguinte é perceber que não apenas o corpo de um possível oponente é frágil e impermanente, nosso próprio corpo também o é! Não à toa no bushido japonês se diz que “o caminho do samurai é encontrado na morte” e o símbolo do samurai a flor de cerejera. Uma flor extremamente efêmera, como na realidade são todos os fenômenos. O caminho da arte marcial nos coloca em contato com a verdade da vacuidade com relação a nós mesmos, e pode nos ajudar a superar a ilusão do eu. Isso se se tem em mente as majestosas metáforas do budismo de que as artes marciais orientais estão imbuídas. Mas eis que aí surge o problema ao nos depararmos com esse aspecto da arte marcial.
É importante que tenhamos em mente essas majestosas metáforas, esses símbolos e ethos particulares do caminho do guerreiro, mas nesse ponto surge a armadilha. Podemos seguir esse caminho como meros papagaios, sem jamais compreendê-lo, apenas como uma mascarada, e a alma não suporta a contrafação. Vou começar com um exemplo simples para depois explicar as causas desse fato. A polidez e a hierarquia que existe num recinto de treino de artes marciais. Normalmente, existem vários termos – normalmente em chinês e japonês – para se referir as pessoas de maneira polida numa escola de artes marciais: sempai, sirin, sensei, sifu, etc, além de uma série de regras a serem seguidas, sendo essas regras mais ou menos enfatizadas dependendo de uma série de fatores. Normalmente, entre os praticantes ocidentais a ênfase recai sobre a regra, e seu cumprimento escrupuloso mesmo que não se entenda bem o porquê. Ou, ainda pior, com a compreensão que a existência de uma hierarquia é o sentido das regras, algumas das quais parecem absurdas. Na realidade isso é uma abominação, uma deformação grosseira e um macaqueamento que se reveste de pompa, mas que é vergonhoso.
Passei a compreender melhor o sentido vivo desse tipo de coisa ao treinar com chineses, eles na verdade não têm regras, mas sim um ethos, um costume. As pessoas sabem como se portar sem necessariamente apelar para regras, ou coisa do tipo. Na escola da qual tenho a alegria de fazer parte, a Academia Sino-Brasileira de Kung Fu, existem poucas “regras” claras, como cumprimentar os quadros dos mestres ao entrar e sair, e cumprimentar o nosso professor quando ele chega e sai. Tudo o mais surge de maneira natural, como o respeito aos alunos mais velhos, que raramente são chamados de sirin, eu mesmo prefiro me referir como “irmão mais velho” que é a tradução do termo, sirin é um estrangeirismo que não me diz nada. Não existem treinos coletivos, cada um ao chegar treina o que quiser, pelo tempo que desejar, e recebe uma atenção proporcional ao quanto se esforça nos treinos e ao seu tempo de treinos. Só de vez em quando vejo alguém por lá usar o termo sirin, por exemplo, pois quando há esse ethos, importa mais o “como” do que “o que” se faz. Um dos hábitos que adotei, depois que um velho amigo me explicou o significado, foi o de pagar aos alunos um jantar depois de alguma exibição, ou algo que o valha, hábito excelente, pois normalmente vamos a um restaurante Cantonês fenomenal. Campbell, em seu livro O Poder do Mito, conta um “causo” interessante para explicar a diferença entre “regras” e um ethos:
No futebol americano, por exemplo, as regras são muito rigorosas e complexas. Se você fosse à Inglaterra, por exemplo, veria que as regras do rúgbi não são assim tão rigorosas. Quando eu era estudante, nos anos 20, havia uma dupla de jovens que formavam uma ala sensacional, especializada no passe de longa distância. Eles foram para Oxford, com uma bolsa de estudos, se inscreveram no time de rúgbi e um dia introduziram o passe dianteiro. E os jogadores ingleses disseram: “Bem, não temos regras para isso, portanto por favor não o façam mais. Não jogamos desse modo.” O fato é que, numa cultura que tenha se mantido homogênea por algum tempo, há uma quantidade de regras subentendidas, não escritas, pelas quais as pessoas se guiam. Há um ethos ali, um costume, um entendimento segundo o qual “não o fazemos dessa maneira”.
A maneira correta de se portar não serve a uma hierarquia, essa hierarquia que surge nas artes marciais emana na realidade, quando é genuína, de outros aspectos. E mais, a hierarquia serve ao indivíduo e não o contrário. Para que serve usar um comportamento ritualístico, diferente do da rua, ou da vida cotidiana normal ao se adentrar um recinto de treino? Primeiramente para se criar um Temenos, um espaço sagrado, onde cada ato, cada gesto é imbuído de um sentido que aponta para a transcendência. É uma maneira de colocar a psique em sintonia com aquilo que é eterno, “grave e constante no sofrimento humano”, para gerar um aprendizado genuíno, não de alguma técnica, mas da sabedoria daquilo que intemporal em nós, da experiência humana básica e do maravilhamento de estar vivo. Esse cuidado permite que nossa atenção esteja fixada no momento presente e permite que a técnica marcial seja um veículo da mente em direção ao mistério, e não um fim em si mesma. Além disso, em termos mais práticos, serve para desenvolver a atenção, e para um artista marcial atenção é tudo. Funakoshi, pai do Karate moderno narra uma história interessante para exemplificar o papel crucial desempenhado pela atenção dirigida e constante, mesmo fora do lugar de treino, para o artista marcial, o que obviamente implica uma transformação psicológica.
Tsukahara Bokuden, grande mestre espadachim, decidiu testar a capacidade de seus três filhos. Primeiro ele chamou seu primogênito, o jovem Hikoshiro. Ao empurrar a porta com o cotovelo para abri-la, Hikoshiro notou que ela parecia mais pesada do que seria normal e, correndo a mão ao longo da sua borda superior, encontrou e removeu um pesado apoio de cabeça feito de madeira deixado ali, recolocando-o cuidadosamente no devido lugar depois de entrar no quarto. Bokuden, então, chamou o filho do meio, Hikogoro. Quando Hikogoro, sem desconfiar de nada, empurrou a porta, o apoio de cabeça caiu, mas ele mais que depressa o pegou e o devolveu ao seu lugar de descanso original. Então Bokuden chamou seu caçula, Hikoroku. Quando Hikoroku, que de longe ultrapassava seus irmãos mais velhos no manejo da espada, escancarou energicamente a porta, o apoio de cabeça caiu e bateu no seu topete. Em uma ação reflexa, Hikoroku sacou da espada curta à cintura e cortou em dois o apoio de cabeça antes que batesse na esteira de tatami do chão. Bokuden disse aos filhos “Hikoshiro, o único que pratica o nosso método de Kenjutsu é você. Hikogoro, se você se exercitar e não desistir, algum dia poderá alcançar o nível do seu irmão. Hikoroku, no futuro você certamente causará a ruína dessa casa e trará vergonha para o nome do seu pai. Não devo ter alguém tão imprudente quanto você em casa”.
Em muitas artes marciais, o aspecto do respeito às normas e a hierarquia acaba se tornando um fim em si mesmo, e o marcial, confunde-se com o sentido simplesmente de militar, o que é um erro. Pois o sentido de marcial expresso na língua chinesa, por exemplo, difere do nosso. Em certas artes marciais japonesas acontecem também interpretações grosseiras devido ao desconhecimento de aspectos historicamente relativos a essas práticas. O rigor militar nas artes marciais japonesas modernas é algo que difere da maneira como tradicionalmente se eram praticadas, justamente devido à degeneração do ethos guerreiro, e o crescente militarismo japonês a partir da restauração Meiji e que culminou numa postura fascista. No Tao Te King lemos, “quando se perde o grande Tao/ aparecem a moralidade e o dever/ quando a inteligência e o saber prosperam/ surgem as grandes mentiras/ quando os parentes próximos discordam/ aparecem o dever filial e o amor/ quando os estados estão em desordem/ aparecem os funcionários leais”. No Japão, começou-se a louvar as qualidades do samurai justamente quando o ethos guerreiro começou a ser erodido, após a batalha de Sekigahara, com o início do pacífico período Edo, para alguns especialistas até mesmo o termo Bushido surge nesse período.
Nesse caso particular, o formato atual de muitas artes marciais japonesas modernas surge no período anterior à grande guerra, com o esforço do militarismo. Mestre Itozu, que foi professor do grande Funakoshi Gishin, criou os Katas da série Heian (uma forma simplificada) por ser um nacionalista e entusiasta do militarismo japonês, com o intuito de propagar o Karate para fortalecer a nação. O que no fim das contas resultou nos massacres hediondos e nos muitos crimes de guerra cometidos contra civis chineses alimentada pela crença na superioridade do povo japonês. Esse aspecto mais militarizado, com treinos coletivos e mais massificados – ao invés do método chinês que era originalmente copiado – e do rigor na aplicação das regras, com o intuito de formar soldados, surge desse contexto histórico. Todavia, alguns entusiastas acreditam estar treinando como os antigos samurais, e muitas vezes agem com rigor tal que até mesmo os samurais do século XVI se espantariam. Pois essas pessoas acreditam que o ideal social de samurai era a regra, e se esquecem que todo ideal de conduta e comportamento só raramente é alcançado. Mais tolo e anacrônico ainda, é o intuito de treinar para se tornar um “samurai” como alguns desses entusiastas parecem querer, alguns de maneira velada e outros as claras. Um mínino de conhecimento histórico bastaria para desvelar o absurdo desse tipo de comportamento. Mas por quais motivos isso ocorre? Donde advém essa dificuldade com o diálogo com a tradição venerável do oriente?
O Oriente, Índia, China e Japão e os demais países e povos que o habitam, são animados por uma série de metáforas míticas que difere grandemente das nossas, herdadas do humanismo grego e das mitologias levantinas dos Hebreus e de Zoroastro. Um dos princípios fundamentais de nossa cultura é a noção de indivíduo, cada um de nós é uma entidade única, com um destino e sentido para a vida a ser realizado de maneira individual, toda a nossa educação reforça esse aspecto de nossa cultura, ao ponto de termos chegado ao que alguns chamam de “paradoxo da pós-modernidade” tão agudo é nosso senso crítico que se torna difícil estabelecer alguma tradição, pois isso demanda aceitação e não incessante questionamento. Nossas metáforas míticas apontam justamente para isso, indivíduos que em substância são diferentes do mundo e de deus, que criou o mundo como mecanismo e existe apartado dele e de sua criação. O destino é individual, cabe a cada um como indivíduo descobri-lo, tanto é que nossa cultura gerou toda uma filosofia e um direito que justifica e respalda os direitos inerentes a cada ser humano como entidade autônoma. Jung chama atenção para a faculdade tipicamente ocidental do uso da vontade (energia livre disponível a consciência) que nos é inculcada e exercitada em nossa educação e que inexiste nos povos primitivos.
Ele, Jung, tem um exemplo interessante desse fato. Estando na áfrica, no monte Elgon (ele havia aprendido Suawili em um mês apenas) precisava enviar uma carta e se dirigiu a um sujeito que corria longas distâncias para entregar as cartas nos postos ingleses. Ele pediu ao sujeito que o fizesse, mas ele simplesmente o ignorou com grande apatia e desinteresse. Após algumas tentativas frustradas, alguém se aproximou e se dirigiu não ao sujeito, mas ao seu papel como mensageiro, sua “máscara” trazendo o bastão onde ele colocaria a carta e evocando com grandiloqüência a importância da missão e do grande homem branco que a estava requisitando e lembrando da importância do papel do mensageiro. Depois desse pequeno “ritual” o sujeito correu em um dia uns cem quilômetros para entregar a carta. Somente após um ritual adequado ter colocado em movimento as energias do sujeito em relação a um papel social impessoal e de validade eterna ele teve “ganas” de correr.
No oriente, não se espera que alguém seja um indivíduo, que pense, tenha idéias, seja criativo ou alimente dúvidas e esperanças. A premissa mítica fundamental é a de que existe uma ordem cósmica, que vem a ser um vazio inominado e impessoal de onde emana toda a forma e que mesmo os deuses são meros agentes desse vazio anterior a todo o nome, e que cada vida individual é na verdade uma ilusão, pois não é um indivíduo, mas uma emanação dessa totalidade universal e deve viver segundo essa ordem cósmica, seja ela chama de Tao, Dharma ou Bhraman. No Japão feudal, o ideal do samurai era a completa submissão, a aniquilação do seu ego e dos seus desejos em nome da perfeita consecução de seu papel social. Papel social este que lhe foi imposto ao nascer, como tudo o mais. Em japonês, samurai pode ser traduzido como “aquele que serve”, a tal ponto chegava essa submissão e a percepção da ilusão de identidade, mesmo com o corpo, que um dos mais nobres atos era o Sepukku, o suicídio ritual. Um senhor feudal poderia exigir sem qualquer explicação que um de seus subordinados rasgasse ritualmente o próprio ventre em sinal de submissão, diga-se de passagem, uma morte horrenda.
O ideal de educação oriental exclui ou considera abominável aquilo que consideramos válido ou fundamental. A educação consiste justamente em eliminar quaisquer idiossincrasias com o intuito de haver uma perfeita adequação a um papel pré-estabelecido. Campbell narra uma historieta Hindu interessante para ilustrar isso. Um jovem indiano chegou muito atrasado e seu professor foi questioná-lo para saber os motivos de seu atraso. O jovem retrucou que devido a uma enchente as pontes estavam destruídas e não havia barcos ou qualquer meio de atravessar as águas revoltas do rio. Intrigado o mestre perguntou como ele chegara à final de contas. O jovem respondeu que havia começado a pensar “guru, guru, guru” e com essa meditação caminhou pelas águas e chegou são e salvo. Depois da aula, o mestre resolveu testar esses poderes que ele desconhecia em si mesmo e começou a meditar “eu, eu, eu”, mas assim que se aproximou do rio caiu nas águas e se afogou.
O ideal de educação no oriente é a completa identificação com o mestre e a obediência sem questionar, na realidade, nada deve ser questionado. O ego é suprimido desde o princípio com a educação, assim, ao fim da vida, com facilidade um guru o ajuda a se desfazer dele. Além disso, as metáforas míticas do oriente apontam sempre para a unidade, todo o ser é na realidade uma mera casca ilusória e impermanente, que é uma emanação de um princípio eterno, esse sim indestrutível, o que os Indianos chamam de Atman. Enquanto a simbologia oriental aponta para a unidade com o princípio criador, nossas metáforas apontam para uma relação com esse princípio que se encontra fora de nós e com o qual não podemos nos identificar. Somos indivíduos no preciso sentido do termo e nos relacionamos com o eterno dessa maneira, como personalidades que vão até ele, e não como a gota d’água que redescobre sua identidade fundamental com o oceano.
Basta pensarmos no mito de criação Indiano e no mito Hebreu. Para os Hindus o ser primordial se deu conta de sua existência e sentiu medo, mas ao perceber que estava só o medo se dissipou e ele se sentiu solitário e desejou companhia, por isso se dividiu em dois, homem e mulher e os dois se uniram gerando a raça humana, mas a mulher se questionou “como ele pode se unir a mim se somos da mesma substância?” por isso se escondeu, virou uma vaca, e ele um touro e daí surgiram às vacas, e assim sucessivamente até as formigas. E ele se deu conta “eu realmente sou a criação, pois emanei tudo isso! Todo aquele que compreender isto, se torna ele próprio um criador nessa criação”. No nosso caso, nosso infeliz ancestral mítico Adão, criado do barro, foi feito para cuidar do jardim de deus, este ao ver aquele solitário criou os animais para que ele os nomeasse, mas os animais não eram tão divertidos assim – qualquer um que já foi a um zoológico sabe disso – então ele o fez cair num sono profundo e dele removeu uma costela para fazer Eva e aí sim ele ficou satisfeito – apesar de todas as complicações inerentes a mulher, certamente é algo mais divertido do que um bando de animais – nesse caso deus não se dividiu, ele dividiu o homem e ele é algo separado de sua criação, aquilo que é chamado de criatio ex nihilo, deus não criou o mundo partir de si mesmo, mas a partir do nada.
Temos então no oriente a submissão a uma ordem cósmica impessoal que se manifesta na sociedade ao qual as pessoas devem se adequar completamente, aniquilando desde a mais tenra infância seu ego em prol de seu papel social, esse sim eterno e indestrutível, e encarando seu ego e mesmo o seu corpo como ilusões passageiras que o mantêm afastado da realidade da unidade fundamental da criação, que pode ser alcançada ao se desempenhar corretamente seu papel nesta terra. Não que não haja submissão em nossas metáforas, vejam Jó, que mesmo sendo aniquilado por deus a ele se submete completamente, apesar de ser Jô o mais justo entre os justos. Mas aí entra, em nosso caso, o humanismo grego, Prometeu também estava sendo incansavelmente fustigado pelo todo poderoso Zeus, que o punia injustamente, o que ele faz? Manda Zeus catar coquinho, assim ele se refere ao pai dos deuses “ele é um monstro... não ligo a mínima para Zeus. Deixe-o fazer o que lhe aprouver”.
Uma vez conheci uma pessoa que havia ido ao Japão estudar por um tempo métodos pedagógicos e voltou espantada, considerando os métodos japoneses de ensino completamente arcaicos, e isso não faz lá muito tempo. Temos aí valores diversos, a adequação, a submissão, a imitação são valores enquanto para nós a crítica, o questionamento, a personalidade são valores. Sócrates é um herói cultural para nós, e o que ele fez? Ele preferiu a morte a se submeter às leis injustas de Atenas que o fariam trair aquilo em que acreditava, que o levariam a trair a si mesmo. Ele preferiu beber cicuta a se curvar as normas e regras de Atenas que iam contra suas convicções pessoais. Ele mandou à ordem social vigente as favas. E em larga medida nosso ideal é o de um desenvolvimento da personalidade similar, algo que Jung batizou de individuação, a busca por um sentido pessoal para a existência. Por outro lado, no oriente, encontramos a submissão a uma ordem cósmica impessoal.
E então voltamos ao ensino de artes marciais, que nasceram orientadas pelas metáforas míticas budistas, taoístas e confucionistas. Confúcio pregava um elevado grau de submissão aos pais, professores, e a sociedade, na figura do imperador – o filho do céu portador do mandato do céu – sua moral se baseava na obediência, na estrita adesão a certos costumes e maneiras corretas de agir herdadas dos antigos. Para o taoísta Lao Tzu, diante do grande Tao somos todos como cães de palha, em várias passagens se reforça a união mística com o princípio universal que está além de qualquer conceito e se deplora a personalidade, basta abrir e folhear um pouco o livrinho, por exemplo: “(...) Por isso é que o Sábio governa da seguinte maneira/ esvazia os corações e enche os estômagos/ enfraquece as vontades e revigora os ossos/e faz com que o povo fique sem conhecimento/e sem desejos/e providencia/para que os doutos não ousem agir/ ele pratica a não-ação/e em tudo reina a ordem” ou ainda em outra passagem: “céu e terra não são bondosos/ para eles, os homens são como cães de palha, destinados ao sacrifício/ O sábio não é bondoso/ para ele, os homens são como cães de palha, destinados ao sacrifício (...)” vemos aqui que o que se entende por sábio não é, como na Grécia, uma personalidade, mas alguém que se identifica completamente com “Céu e terra” com o curso natural e imutável, e isso só é possível justamente ao se aniquilar aquilo que para o ocidente é o que existe de mais caro: o indivíduo. O valor fundamental do Taoísmo é a renúncia ao eu, o que permite que a unidade fundamental de todas as coisas no Tão se manifeste naturalmente: “O céu é eterno e a terra duradoura/ eles são duradouros e eternos/por não viverem para si mesmos/isso os faz viver eternamente/assim também é o sábio/por menosprezar o seu eu/este aparece em primeiro plano/ele renuncia ao seu eu/e sua essência é preservada/não é assim:/por não querer nada para si/ele próprio se torna perfeito?”, creio que Lao Tzu não poderia se fazer mais claro.
E voltamos ao nosso dilema, que em particular me atormenta mais ou menos desde que tinha uns quatorze anos e que somente aos trinta consegui, ao menos, formular de maneira mais ou menos clara, e que vejo esse mesmo dilema refletido em muitos, mesmo que em outrem ele seja, ironicamente, irrefletido. Infelizmente, a maioria acaba tomando um dos dois caminhos a que me referi no começo, o que pessoalmente vejo como um problema, simplesmente mutilar a arte marcial de seus símbolos e metáforas não resolve nada. Assim como realizar essa mutilação em si mesmo é algo pior ainda, pois quem o faz se coloca fora da aventura do nosso tempo.
E estamos diante de um desafio e tanto, que é estabelecer esse diálogo entre bases culturais tão diversas. Na realidade, desde que o mundo se tornou um lugar pequeno, e não restou lugar para nos isolarmos, esse é um dilema que afeta a todos de uma maneira ou de outra. Pois bem, espero que ao menos aos sessenta em tenha conseguido uma resposta, já que já cheguei ao menos à pergunta, talvez, a resposta para tudo isso seja a do genial Douglas Adams: 42.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Freud e a Religião


Em um dos textos já publicados, ao tratar das funções da mitologia, citei en passant a maneira de Freud encarar a religião. Apesar de atualmente meu interesse por Freud ser, na melhor das hipóteses, escasso, gastei dois anos de mestrado debruçado sobre sua obra. Devido a esse fato, resolvi escrever uma descrição mais minuciosa da perspectiva Freudiana sobre a religião. A obra de Freud é vasta e controversa, e essas teses defendidas por ele foram – não sem razão – contestadas e rebatidas por muitos nomes de peso, especialmente entre antropólogos munidos de dados empíricos que faltavam a Freud. Além disso, a tese de Freud sobre a religião traz a marca indelével de seu tempo e de suas influências, como James Frazer, e do desvalor que imperava na época com relação à religião. Me arrisco a afirmar que as teses de Freud sobre a religiosidade são profundamente “datadas” e fora do debate acadêmico especializado, ou das discussões próprias aos psicanalistas, de pouco interesse. Mesmo assim Freud permanece como um autor importante que se debruçou sobre o tema do mito e da religião, justamente o tema que mais me apaixona, e por isso dedico esse post a pormenorizar suas hipóteses nessa área.
Apesar de seu ateísmo declarado, Freud teve um grande interesse pela religião, e foi para ele uma preocupação constante o quanto a sua posição social como judeu poderia influir nos rumos da psicanálise. Quando aconteceu o penoso e demorado rompimento com Jung, que ele havia declarado seu “herdeiro”, Freud assim se referiu ao episódio.
 Ao enviar a Ferenczi a carta de Jung sobre o fato de não tê-lo visitado em Küsnacht, Freud interpretou-a como uma provável demonstração de que a neurose de Jung devia ser ativa. Tristemente admitiu seu malogro ao tentar fundir “judeus e não judeus a serviço da ψA”. Infelizmente, “eles se separam como azeite e água”. A questão evidentemente preocupava-o; no mês seguinte, disse a Rank que tivera a esperança de realizar a “integração de judeus e anti-semitas no solo da ψA”. Mesmo na adversidade, este continuava a ser o objetivo de Freud. (GAY, 2004, p.221).
Há inúmeras referências dispersas à religião nos primeiros artigos e nas cartas de Freud. Não obstante, os estudos mais direcionados aos aspectos da cultura, em particular a religião datam principalmente do período de 1914 – 1939, quando, já tendo estabelecido os principais elementos da psicanálise, Freud passou a resumi-los e revisá-los. Entre os primeiros escritos sobre a temática religiosa, o mais importante é o pequeno artigo Atos obsessivos e práticas religiosas (1907). Nesse artigo, Freud introduz vários temas que desenvolveu seis anos mais tarde em Totem e Tabu. Dentre esses temas, destaca-se sua concepção de que a neurose obsessiva pode ser considerada a contraparte patológica da religião. A neurose obsessiva seria uma espécie de religiosidade individual, funcionando a religião como uma neurose obsessiva universal. Os rituais religiosos e os rituais sintomáticos desempenhados pelos obsessivos teriam a mesma origem, e a mesma finalidade: evitar certas tentações inconscientes, bem como prevenir as punições que advém ao se sucumbir a essas tentações. De maneira similar ocorre na neurose obsessiva, a religião surge a partir da supressão de certas pulsões, ou da renúncia delas. A religião é, para Freud, uma expressão de pulsões que ela mesma suprimiu. (Palmer, 2001).
Seis anos depois, em seu estudo sobre Leonardo da Vinci (1910), também ressaltou que o sentimento de culpa e a necessidade de proteção que marcam a religião advém da condição biológica humana de total desamparo nos primeiros anos de vida, mais especificamente devido a um complexo parental experimentado pela criança indefesa; a sensação de intimidação e autoridade que emana do pai. (PALMER, 2001).
A teoria evolucionista ainda era uma novidade extremamente controversa, mas que surgia no cenário intelectual como mais um argumento para o agnosticismo defendido por Helmholtz. Não havia a necessidade de se apelar para uma divindade criadora para se compreender a ordem natural dos seres vivos, tudo podia ser remetido a um entrechoque de forças, a “struggle for life” defendida por Darwin. (GAY, 2004).
Em 1875 Freud viajou a Manchester para fazer uma visita aos seus meio-irmãos. Desde sua infância Freud lia e apreciava bastante a literatura inglesa. Ao retornar de sua viagem, Freud trouxe em sua bagagem mais do que souvenires e recordações agradáveis, havia entrado em contato com vários livros científicos ingleses: Tyndall, Huxley, Lyell, Darwin, Thomson, Lockyer, etc. Além disso, o empirismo inglês e sua aversão à metafísica o haviam encantado, e ajudado a afastar seus interesses das especulações filosóficas. Em seu retorno à universidade, concentrou-se em seu trabalho no laboratório de Carl Claus – que era um dos mais eficientes e prolíficos divulgadores de Darwin em língua alemã . Foi por essa época, sob a tutela de Carl, que Freud viajou ao mediterrâneo para pesquisar as gônadas das enguias, tendo dissecado um número enorme delas. “A busca das gônadas da enguia contribuiu para ensinar a Freud a observação paciente e exata, o tipo de atenção concentrada que mais tarde julgaria tão indispensável ao ouvir seus pacientes”. (GAY, 2004, p.46).
Depois de trabalhar com Carl Claus, Freud juntou-se ao laboratório de fisiologia de Brücke. Foi uma época singularmente feliz para Freud, que adorava seu trabalho junto ao fisiologista, explorando os mistérios do sistema nervoso, bem como adorava ao próprio Brücke, tendo afirmado que ele foi “a maior autoridade que agiu sobre mim”. Em 1892, após a morte de Brücke, Freud deu ao seu quarto filho o nome de Ernst, em homenagem ao seu falecido mentor. Foi também junto ao círculo de dele que Freud conheceu um amigo que desempenharia papel decisivo e talvez indispensável na formação da psicanálise: Josef Breuer, importante fisiologista e médico bem sucedido, homem de grande erudição, rico e quinze anos mais velho que Freud.
A filosofia da ciência de Brücke foi tão formativa para Freud quanto seu profissionalismo. Era um positivista por temperamento e convicção. O positivismo não era tanto uma escola organizada de pensamento, e sim uma atitude difusa em relação ao homem, à natureza e aos métodos de investigação. Seus partidários tinham a esperança de trazer o programa das ciências naturais, suas descobertas e métodos, para a investigação de todo o pensamento e ação humanos, públicos e privados. Típico dessa tendência intelectual é que Auguste Comte, o profeta do positivismo do começo do século XIX em sua forma mais extremada, tenha considerado possível dar bases sólidas ao estudo do homem em sociedade, inventando o termo “sociologia” e definindo-a como uma espécie de física social. Nascido do iluminismo do século XVIII, rejeitando a metafísica de maneira apenas ligeiramente menos categórica do que a teologia, o positivismo havia prosperado no século XIX, com as vitórias espetaculares da física, da química, da astronomia – e da medicina. Brücke era seu representante mais eminente em Viena. (GAY, 2004, p.48).
Brücke havia trazido seu estilo de fazer ciência de Berlim. Ainda acadêmico de medicina, havia se juntado a seu colega Emil Du Bois-Reymond para difundir o ideário positivista e combater sem tréguas todo tipo de superstição, misticismo e panteísmo. Ambos materialistas convictos acreditavam que apenas as forças físico-químicas agiam no organismo, e que qualquer força atuante na matéria deveria ser redutível a componentes da atração e repulsão. A dupla, Brücke e Du Bois-Reymond, se uniu ao admirável Hermann Helmholtz - personalidade renascentista que deu contribuições de grande valor nas mais diversas áreas da ciência – juntos, seu prestígio intelectual era enorme. (GAY, 2004).
Helmholtz foi médico militar, professor de fisiologia e, a partir de 1871, professor de física em Berlim. (ASSOUN, 1983).
O duplo interesse pela física e pela fisiologia, dado da época, indica por si só o sentido do empreendimento de Helmholtz. Este afirma seu projeto, desde seu trabalho Da conservação da energia (1847), onde aplica o princípio da conservação da energia aos fatos fisiológicos. Eis o enorme papel histórico que, a partir de então, recomenda Helmholtz como autoridade aos sábios de sua época: é ele quem, apenas cinco anos depois da introdução da conservação de energia por Mayer no domínio da física, a estabelece como postulado para a fisiologia. Dessa forma, a fisiologia funda sua pretensão de seguir os passos de sua irmã mais velha, a física. (ASSOUN, 1983, p. 180).
As concepções desses três luminares do positivismo deitaram raízes profundas no espírito de Freud, que mesmo na formulação de sua ciência, a psicanálise, nunca se afastou completamente dos principais postulados de seu admirado mestre Brücke. O trio de médicos positivistas, que tanto inspirou Freud em seus anos de estudante, encontrou ainda maior fôlego na obra de Darwin, no início dos anos de 1870. A teoria evolucionista ainda era uma novidade extremamente controversa, mas que surgia no cenário intelectual como mais um argumento para o agnosticismo defendido por Helmholtz. Não havia a necessidade de se apelar para uma divindade criadora para se compreender a ordem natural dos seres vivos, tudo podia ser remetido a um entrechoque de forças, a “struggle for life” defendida por Darwin. (GAY, 2004).
O grande naturalista inglês teve profunda influência no pensamento de Freud. Principalmente em suas pesquisas voltadas para a compreensão da religião e da cultura em geral. Em 1913, ao escrever Totem eTabu, Freud se inspirou no trabalho de um número considerável de autores, entre eles Darwin.
Embora de início estimulado pelo trabalho de Wilhelm Wundt e Carl Gustav Jung, Freud tem como principais fontes The Descent of Man (1871), de Darwin, as Palestras sobre a religião dos semitas (1889), de W. Robertson Smith, A lei primal (1903), de J. J. Atkinson, e os dois volumes de Sir James Frazer, O ramo de ouro (1903) e Totemismo e exogamia (1910). (PALMER, 2001).
A teoria de Darwin influencia o conteúdo de Totem e Tabu, não tanto a teoria evolucionista, mas a tese de Darwin sobre a “horda primitiva”.  Segundo essa teoria, a vida dos homens primitivos era muito similar a dos símios superiores: eles viviam em pequenas “hordas” comandadas por um pai poderoso que possuía muitas mulheres e muitos filhos. Para manter seu poder, esse macho alfa os impedia de cruzar com as fêmeas do grupo, o que obrigava os jovens machos a procurar fêmeas fora da tribo, enquanto as jovens fêmeas podiam acasalar somente com ele. A essa teoria Freud acrescentou duas outras descobertas. A primeira de Atkinson; como conseqüência da horda primitiva os jovens machos se tornaram exógamos. A segunda idéia veio de Roberson Smith; ele sugeriu que parte do sistema totêmico envolvia uma cerimônia de “refeição totêmica”. Neste referido ritual o animal totem era sacrificado e devorado por toda a tribo, em seguida era pranteado. Esse ritual estabelecia um vínculo sagrado entre a comunidade e sua divindade. (PALMER, 2001).
Freud usa as teorias de Darwin, de Atkinson e de Smith para apresentar a seguinte reconstrução: a posição do macho dominante no âmbito da horda primitiva não era garantida de uma vez por todas. Um dia, os filhos combinaram matar e devorar o pai, que fora tanto o seu inimigo quanto o seu ideal, e, assim, não só se identificaram com ele e adquiriram uma parcela de sua força como, ao fazê-lo, levaram ao fim a horda patriarcal. A partir de então, contudo, os filhos, tomados pela culpa daquilo tinham feito e incapazes individualmente de assumir a posição do pai, formaram um cã de irmãos, passaram a praticar a exogamia – removendo assim o motivo original do assassinato do pai – e criaram um substituto do pai na forma do totem. Dessa maneira, a celebração anual da refeição totêmica não passava da comemoração solene do crime original do assassinato do pai. (PALMER, 2001, p.39).
Para justificar que esse ato diacrônico engendre uma marca “atávica” sobre a humanidade, Freud utiliza uma teoria muito vaga sobre um mecanismo de herança, ou de memória herdada de franca inspiração Lamarkista. Para explicar tal coisa ele faz uso de dois termos amplamente aceitos à época, introduzidos pelo biólogo alemão Ernst Haeckel e já empregados por Frazer: ontogenia e filogenia. (PALMER, 2001). Essa teorização de Freud encontrou inúmeros críticos, entre eles A. L. Kroeber, Malinowski, e mais recentemente, Evans-Pritchard.
[...] A teoria da horda primitiva de Freud é uma hipótese insubstanciada, baseada nas especulações de Darwin, elas mesmas escritas numa época em que não se dispunham de dados confiáveis. Mas pesquisas subseqüentes revelaram uma ampla variação em termos dos agrupamentos sociais dos primatas, tendo o autor, Paul Simonds, assinalado organizações baseadas em indivíduos solitários, pares acasalados, grupos isolados de um só macho e bandos de machos e fêmeas adultos com filhotes. Os gorilas têm reconhecidamente uma estrutura social semelhante a uma horda primitiva; não obstante, como nos lembra Zuckermen, “o fato de os macacos viverem em grupos familiares não é em si prova de que os primeiros homens tenham feito o mesmo...; não há uma razão clara para que o comportamento social dos ‘pré-humanos’ seja considerado semelhante ao dos macacos de grande porte e não ao dos macaquinhos. (PALMER, 2001, p.85).