segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Defesa Pessoal

Estava matutando outro dia sobre as minhas experiências como artista marcial, seja como praticante ou professor, e resolvi colocá-las no papel, em particular o que concerne a possibilidade do uso efetivo em situações reais de combate do Kung Fu e da arte marcial de modo geral. A princípio, devo deixar claro que sigo a risca, e concordo plenamente com o pensamento que meu professor, Grão Mestre Kwok Wai, sempre professa sobre esse tema. Desde a invenção das armas de fogo o Kung Fu passou a ser praticado para saúde. No filme Mar de Fogo há uma fala interessante que me chamou a atenção “God did not made man the same, mister Colt did”, com o advento das armas de fogo, mesmo o maior perito em Kung Fu pode ser facilmente abatido a distância por um velhinho de noventa anos com uma pistola, desde que ele esteja de óculos. Mesmo assim, a possibilidade de uso efetivo em situações de vida ou morte traz ao treino seriedade e perspectiva e não deve ser negligenciado.
Ao meditar sobre a preparação para uma situação de risco real, sem qualquer controle e onde sua integridade física e a de terceiros está em jogo, cheguei a conclusão que podem existir basicamente quatro estágios de desenvolvimento em que o praticante se encontra para poder reagir ou não, a uma situação como a descrita. Creio que o primeiro estágio seja o de simplesmente saber executar de maneira correta as técnicas e as formas. Toda arte marcial possui um conjunto de técnicas, expressos de muitas maneiras: sejam os Katas ou Katys do Karate e Kung Fu, ou as técnicas de torção e projeção como no Aikido e Judô, entre tantas outras. Nesse primeiro nível, o estudante já consegue executá-las de maneira correta, num ambiente seguro e controlado e talvez já consiga até mesmo imaginar possíveis variações ou respostas adequadas às mesmas técnicas que pratica. O fato de conseguir executá-las com correção em parceiros de treino amigáveis na escola de artes marciais, no entanto, não significa que possa utilizá-las para salvar sua própria vida.
Um segundo estágio, ao meu ver, é quando o corpo do praticante está adaptado as técnicas. Muitas das técnicas possuem movimentos que parecem estranhos, ou não naturais, ou exigem força e flexibilidade, ou mãos seguras, dedos resistentes, ou simplesmente um certo grau de vigor atlético. No Kung Fu, bem como em certos estilos de Karate de Okinawa que derivam suas técnicas do Kung Fu de Fukien, existem abundantes exercícios para tornar o corpo mais rijo e resistente, as mãos mais duras e capazes de feitos aparentemente sobre-humanos. Ou, em outras artes, a própria prática, repetida a exaustão, molda o corpo do estudante que seja diligente o bastante. Certa vez, ao saber do meu interesse pela espada reta, um dos meus irmãos mais velhos de Kung Fu mais diletos, e com quem já aprendi muito, chamado Ruben, repetiu para mim um velho ditado chinês “para aprender o facão treina-se todo dia por cem dias, para se aprender a lança, treina-se todo dia por mil dias, para se aprender a espada deve-se treinar todos os dias por dez mil dias”.
Num terceiro estágio, além do treino técnico e do treino físico, atingi-se de algum modo, a compreensão de que existe um aspecto energético, que normalmente é representado pela capacidade de controle da respiração, chamada pelos hindus de prana, ki pelos japoneses, ou chi pelos chineses. Em todos esses sistemas de pensamento, o corpo físico é perpassado por um corpo sutil, repleto de canais energéticos onde essa energia circula e pode ser ativada ou movida de muitas maneiras, como por exemplo, na prática da acupuntura. Na realidade não há uma separação cabal entre nosso corpo físico e esse corpo sutil, na medicina chinesa se diz que cada vez que movemos uma parte do nosso corpo mobilizamos Chi para essa área, e que mesmo nos vasos sanguíneos também circula o Chi. Esse estágio significa simplesmente uma consciência desse aspecto sutil e a possibilidade de utilizar isso numa luta. A maioria das artes marciais jamais chega a esse nível de sutileza, são o que na China se denomina “estilos externos”, logo, esse é um nível que, apesar de importante, não é estritamente necessário a defesa pessoal.
Chegamos agora à culminância do processo, sem o qual todos os demais passos são completamente inúteis, ou na melhor das hipóteses, não totalmente eficazes numa situação real de vida ou morte: a preparação psicológica. Imagine-se numa situação em que você possui apenas uma fração de segundos para agir antes de ser morto ou ferido gravemente, se você titubear, ou tiver que planejar algo, ou tiver que conscientemente lembrar uma técnica, você terá desperdiçado seus preciosos segundos.  O Kung Fu de Shaolin surgiu num templo de budismo Chan, onde os monges praticavam constantemente a meditação. O Dalai Lama fala muitas vezes da morte e sempre que é questionado sobre sua familiaridade com a morte, ele diz que a experimenta várias vezes ao dia, ao meditar. Assim como no Zen japonês há o ditado de que cada vez que se senta para meditar é como se deitássemos em nosso caixão. Pode parecer mórbido, mas a prática meditativa possui como um de seus efeitos o preparo da consciência para seu desprendimento, visto que deve-se combater a ilusão da personalidade. Numa luta real medo e desejo não têm lugar, o primeiro o prende ao passado e o segundo ao futuro, e a luta está ocorrendo no presente. A real efetividade de uma técnica depende dela ser realizada de maneira natural, espontânea e automática. Isso não é nenhum feito alheio a realidade, qualquer pessoa acostumada a dirigir consegue passar as marchas sem pensar a respeito, até mesmo enquanto conversa com alguém, de maneira automática.
Nem todas as artes marciais possuem técnicas próprias de meditação, ou qualquer outro tipo de preparo, até porque era comum na China e no Japão que as pessoas as praticassem alhures. Além disso, de certa maneira, a própria execução das técnicas pode servir de base para a meditação, talvez o Tai Chi seja o exemplo mais bem acabado do que acabo de dizer, mas qualquer técnica marcial se presta a isso. Ao menos como o nível meditativo mais elementar, chamado no budismo tibetano de Shamata. Além do aspecto do uso prático, ou seja o ataque e defesa real, a preparação psicológica adequada lhe permite manter um estado de atenção que é o que define o verdadeiro artista marcial, e que provavelmente o manterá afastado de problemas que o obrigariam a usar suas habilidades. No Kung Fu Shaolin, as práticas de Chi Kung servem aos dois propósitos de cultivo do Chi e meditativo, assim como as práticas dos Katys e algumas meditações taoístas que se fazem de pé chamadas de Nei Gong. Além da meditação, confesso que desconheço qualquer outro método para preparar alguém para a experiência do combate real. Talvez a exposição a situação reais depois de um treinamento intenso e bastante repetitivo leve ao estado de mente adequado, mas nesse caso estamos colocando o carro na frente dos bois.
Bem, essas são as minhas conclusões, conheço muitas pessoas que duvidam seriamente da existência de algo tão fantasmagórico como o Chi ou algo que o valha, é difícil dissuadir essas pessoas por dois motivos bem simples. O primeiro é que esse discurso foi apropriado por inúmeros embusteiros, indivíduos sem escrúpulos que se aproveitam da tendência de certas pessoas de buscarem a fantasia, e de acreditarem mais em coisas fabulosas. Normalmente, esses supostos mestres se esquecem de salientar que os poderes ou capacidades desenvolvidos com o uso do Chi demandam um treino assíduo e extremamente demorado e que demanda muitas privações. O segundo motivo é que, para qualquer um que já tenha praticado com seriedade Chi Kung, Yoga, ou algum tipo de meditação, ou mesmo Tai Chi ou outro estilo interno, é impossível negar as experiências que se tem com esse tipo de prática. Todavia, essas experiências são pessoais, e é difícil muitas vezes até mesmo descrevê-las.
Com relação à prática da meditação associada às artes marciais, esbarra-se em muitos outros empecilhos. A prática da meditação é muitas vezes vista como algo religioso, e não raro certas crenças são exclusivistas e/ou demonizam as crenças alheias. Nosso dia a dia é muito corrido e vivemos num mundo extremamente materialista e preso a um imediatismo, e se algo não é palpável, ou não me traz resultados imediatos, não é bom. Há também um certo estereótipo de arte marcial que não se coaduna com a meditação, seria a imagem do “pit-boy” grosseiro e rude, para quem algo que não vá aumentar os seus bíceps ou sua capacidade cardiovascular  não interessa. Isso como alguns exemplos, muitos mais poderiam ser elencados. É claro que além desses, ligados a más compreensões e pré-conceitos, existem pessoas sérias e dedicadas ao cultivo da arte marcial que possuem objeções a isso, mas como disse a princípio, falo a partir da minha vivência e do meu percurso, e foram a essas conclusões que cheguei.

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