quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A quarta função da mitologia

bem, como o post anterior acabou sendo muito longo, resolvi escrever especificamente sobre a função psicológica da mitologia segundo nos ensina Joseph Campbell. recapitulando, os símbolos míticos proporcionam um sentido de efetiva participação na transcendência, esses símbolos possuem a função de auxiliar o indivíduo a atravessar vários estágios e crises da vida de maneira significativa, isto é, a compreender a vida de maneira íntegra. a metáfora religiosa nos coloca em harmonia com nossa cultura, consigo mesmo, com o universo e com o mysterium tremedum da existência. muitos de nós, alienados das fontes profundas da vida, nos julgamos profundamente individuais e únicos, mas nossa vida transcorre, em larga medida, de maneira coletiva. todos nós, enquanto seres humanos, encaramos a dor, a perda, a morte, a dúvida, a doença e todo tipo de sentimento. além disso, nossa vida consiste - se enxergada de maneira simbólica - de várias mortes e renascimentos. passamos por várias crises de adaptação, um dia todos já fomos crianças e em algum momento (espera-se) nos tornamos adultos responsáveis e no momento certo, chega a hora de nos afastarmos dos afazeres cotidianos após termos servido o que os hindus chama de artha - conseguimos dinheiro e posição, criamos uma família, demos algo para a sociedade - e na velhice, nos voltamos para nós mesmos, para o grande mistério final que é a morte, sendo essa fase tão prenhe de significados e realizações quanto as demais, mas num outro âmbito.

é função do mito nos auxiliar a atravessar esses portais, a colocar nossas energias em harmonia com nossa cultura, o universo, o mistério da vida e nossa própria alma. é importante perceber que a ausência de uma simbólica efetiva, energizada pela metáfora, nos coloca numa queda livre em direção a um futuro que desconhecemos, todos nós, não apenas os heróis culturais ou poetas, todos nós. a maioria não está preparada para tal chamado a aventura, e acaba se perdendo de si mesmo. termina preso no estado que Joyce chama de terra devastada, quando o mundo não é capaz de se comunicar conosco, quando agimos baseados apenas no dever, desvinculados da voz em nosso coração que nos diz onde está nossa bem aventurança. dessa maneira, vive-se uma vida inautêntica, mesmo que se amealhe riqueza e poder, essas realizações apenas reforçam os muros que criam os labirintos que aprisionam nossas almas. muitos já escreveram e falaram sobre esse "vazio", esse "mal estar", pois ao abandonarmos os tesouros simbólicos de nossa tradição deixamos de lado de maneira arrogante as pontes que nos ligam a vida genuína, as possibilidades inauditas que dormitam em todos nós. como está escrito no evangélio gnóstico de tomé, ergue uma pedra e ali estará o reino dos céus, racha um cajado e estarei lá. nos ensina Campbell, em seu maravilhoso herói de mil faces, que o herói se aventura no reino misterioso dos deuses, ou no mundo inferior dos mortos. nosso mundo e o outro mundo, são na realidade um único reino. "Os dois mundos, divino e humano, só podem ser descritos como distintos entre si — diferentes como a vida e a morte, o dia e a noite. As aventuras do herói se passam fora da terra nossa conhecida, na região das trevas; ali ele completa sua jornada, ou apenas se perde para nós, aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como uma volta do além. Não obstante — e temos diante de nós uma grande chave da compreensão do mito e do símbolo —, os dois reinos são, na realidade, um só e único reino. O reino dos deuses é uma dimensão esquecida do mundo que conhecemos.".

quando estamos em harmonia com nosso próprio coração, conosco mesmo, com aquilo que jung demoninou de si-mesmo (selbst em alemão), podemos viver vidas autênticas. a metáfora religiosa têm sido em todas as épocas da humanidade, menos talvez na nossa, a maneira de nos relacionarmos com as profundezas abissais de nossas almas, caminhar pelas trilhas escuras e cheias de perigos contando com o fio de ariadne que nos levará de volta com o tesouro da reovação de vida, com o graal tão arduamente buscado, que representa o renascimento da personalidade, após sua morte e destruição que ocorre no processo. sem o mito, estamos presos nesse labirinto, onde sabemos que um monstro nos espreita, mas sem o novelo que serve de guia.

atualmente, essa é talvez a função mais importante do mito, nos guiar em nossa aventura, pois a função cosmológica foi amplamente substituída pela ciência moderna, assim como a função de dar esteio a uma moral e ética, vem sendo ocupada por outros aspectos de nossa cultura como as leis e a filosofia - se estão obtendo sucesso é outra discussão - sendo assim, a realidade da alma descrita nas metáforas do mito e da religião, é o tesouro buscado, mesmo que não se saiba disso. continuo mais tarde...


Continuando, a perspectiva psicológica não deve ser superestimada, do contrário acaba-se caindo em psicologismo, e a simbólica mítica é de tal maneira multifacetada que não cabe em formas estreitas. nesse ponto é interessante salientar certos aspectos da abordagem psicológica em relação ao mito. sem sombra de dúvida, a possibilidade de compreensão mais interessante é a de C. G. Jung. a psicologia junguiana possuia certas peculiariades ao tratar da metáfora religiosa, justamente para não incorrer no erro do psicologismo. a perspectiva da psicologia analítica (que é como se chama a psicologia fundada por Jung) se baseia em premissas Kantianas, que apesar de complexas, podem ser facilmente resumidas. Jung postula uma realidade psíquica "é real aquilo que atua", então ao se examinar uma imagem de deus, seja num sonho, sintoma, discurso consciente ou mito, ela é considerada um fato psicologicamente real, para Jung em termoa anímicos deus é um fato não uma hipótese ou suposição. todavia, a psicologia não invade o campo da filosofia e da teologia, não cabe ao psicólogo decidir se em termos metafísicos ou outros, deus é real, na verdade isso pouco importa. importa sim que suas imagens podem agir com força poderosa sobre as almas humanas, com aquilo que Jung chama - usando os termos de Rudolph Oto, um teólogo - de númem. dessa forma, ao psicólogo é igualmente aceitável quando um paciente em seu divã se diz crente ou ateu, ambas as crenças na existência de um ens metafísico ou em sua inexistência, são fatos psíquicos e atuam vivamente de maneira negativa ou positiva em sua alma.


para o estudo de mitologia comparada, a perspectiva psicológica ajuda a desvendar a relação das metáforas religiosas que aparecem nas narrativas míticas, nos rituais, arte sacra, contos de fada e mitologia criativa, com as funções psicológicas de nossa própria alma. o mito aparentemente descreve eventos fantásticos e fantasmagóricos, de um passado e terras disntantes, mas na realidade, ele nos fala daquilo que é "grave e constante no sofrimento humano". a trilogia Star Wars começava sempre com os dizeres "a long, long time ago, in galaxy far, far way", como o rito de entrada de certos contos de fadas, e em meio a planetas exóticos e inóspitos, cavaleiros jedis com poderes surpreendentes, somos surpreendidos pelo drama demasiado humano da busca de um filho por seu pai, que se vê redimido pelas ações do filho, quando Luke finalmente atinge a maturidade ao confrontá-lo, negá-lo e ao mesmo tempo, tornar-se como Anakin, um Jedi. mesmo em meio as imagens fantásticas e geniais do filme, nada mais humano. nada mais humano e punjante que o amor de Han Solo por Leia, que o redime e o faz reencontrar o herói que dormitava dentro do contrabandista, ou a amizade Chewbaca por Han. de maneira similar, em meio as imagens fantásticas, aos motivos infantis do mito, repousa um tesouro de sabedoria inestimável, que tem guiado os homens de todos os tempos e lugares.



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